I. Considerações Iniciais.
A literatura de Clarice Lispector assume uma condição em que o que é intrinseco à obra de arte é contemplado, em última instância, não no que lhe é restritamente palavra, mas também sob a forma da imprescindível abdicação da matéria-prima literária que impulsiona o movimento paradoxal realizado a partir do que denominamos “silêncio”. Há na ausência o resultado de um esforço pela representação do que somente é indicado quando afastado do monolítico conjunto de princípios que regem o funcionamento da língua portuguesa; quando singularizado na composição realizada sob o livre modelar da matéria escritural; quando apartado de uma leitura esquemática habituada às estratégias associadas à literatura, ou ao que, em geral, considera-se “literário”. A busca pela agnominação do que está para além do código verbal – que sentencia sua escrita a atravessar os sentidos dos termos do invólucro da normatividade ao terreno das hipérboles, dos pleonasmos, dos oximoros, das redundâncias, dos paradoxos, das alusões irônicas e das plurissignificações – faz de sua escrita uma constante tentativa de articular o inarticulável por intermédio de sucessivas aproximações; de captar o que só é dito no “fracasso” da linguagem consentâneo à reivindicação de seu uso pleno. A isto que se localiza oblíquo ao que se apresenta imediatamente aos sentidos pelo texto, cabe aqui dedicarmos atenção, buscando no índice textualizado o que a ele subsiste enquanto sentido abstrato e o que nele corrobora para um ponto de vista em que o cunho místico da escrita clariciana é observado.
Contudo, fazer clarear por qualquer outro viés que não o literário Aquilo que é percebido em posição espectatorial na relação do sujeito com a obra de arte, é um trabalho que aduz suas fronteiras na própria linguagem. Se a “palavra secreta” que a escritora carrega no íntimo de uma porção de folhas brochadas fosse de fato transladável, teria, ao menos, uma outra palavra fora de seu âmago original, a literatura, que a designe em sua integralidade. Realizaríamos aqui, se assim fosse, uma atividade equivalente aos procedimentos matemáticos, que consistem essencialmente em examinar propriedades de seres abstratos e as relações estabelecidas entre eles. É certo que a nossa tarefa requer algum outro método, sobretudo porque o objeto aqui analisando tem sua natureza dita no que é posterior à possibilidade de uma articulação axiomática, o que nos sentencia, no maior dos esforços, a um modesto abeiramento da mesma. Dessa forma, podemos resumir nossas pretensões nos seguintes termos: encontrar em Clarice Lispector a chave hermenêutica que a aproxime de uma descrição teologicamente sistematizada da realidade por ela expressa literariamente. Para tal, adotamos uma postura critico-interpretativa frente à ficção Um Sopro de Vida: pulsações à luz da teologia mística de Pseudo-Dionísio, o Areopagita, interessando-nos no que há de mais substancial na obra lispectoriana e procurando confrontar esses elementos com os conceitos presentes no tratado Sobre a Teologia Mística para Timóteo.
II. Uma visão geral da obra.
Em Um Sopro de Vida a narrativa é discorrida pelo ponto-de-vista de um escritor acerca do qual temos pouca informação. O que se nota à primeira vista é que trata-se de alguém coagido a escrever por uma íntima ordem de comando, como se fosse para salvar a vida de alguém. O tom de obrigatoriedade anuncia a azáfama pretensiosamente lúcida do Autor, pondo o leitor em um estado nebuloso, mas, ainda assim, especulativo, como se ele soubesse de algo que não sabemos; como se ansiasse trazer a público a descoberta de algo até então encoberto: “Cheguei finalmente ao nada. E na minha satisfação de ter alcançado em mim o mínimo de existência, apenas a necessária respiração – então estou livre. Só me resta inventar.”. Mesmo apontanto para o que debalde se empenha a dizer, o que resta das primeiras páginas do texto é a inevitável necessidade de encontrar algum arrimo que suporte instrumentalmente aquilo que custa fazer-se compreensível em primeiro plano. Para isso, a composição de um personagem, isto é, a criação de uma realidade autônoma que o permita, enfim, falar, é consequente: “a solidão, a mesma que existe em cada um, me fez inventar.”.
Diante da tarefa de tornar difusível o que se manifesta em mistério, o recurso socorrista adotado tem o nome de Ângela Pralini: uma mulher de 34 anos, um metro e setenta de altura e nascida no Rio de Janeiro - dados imbuídos de aleatoriedade, o que não é por acaso: essas informações, na verdade, importam à dinâmica funcional que a personagem desempenha justamente na medida em que não se relacionam com esta. Mesmo burocraticamente identificada, pode-se dizer que Ângela tem a sua natureza extrabiográfica revelada na razão pela qual foi projetada: “Escolhi a mim e ao meu personagem – Ângela Pralini – para que talvez através de nós eu possa entender essa falta de definição da vida.”. Neste que agora é um livro sobre Ângela, o interesse do Autor se mistura com a forma assumida pela protagonista nos instantes em que a incerteza das palavras que ele usa para criá-la estabelece uma relação selada pela intersubjetividade dos dois, impressa no texto como um binômio que deve ser visto simultaneamente: “Ei-la falando como se fosse comigo mas fala para o ar e nem sequer para si mesma e só eu aproveito do que ela fala porque ela é de mim para mim.”.
Munido de Ângela, a ânsia do Autor é pela representação. Com ela, a esperança é que a turvação do que é original ao terreno límpido e da pura informação se esvaíra em desembaço na interação “dialógica” dos “dois”: separados por uma necessidade artística, mas unidos pela própria natureza do ato de criação. Diz o Autor: “Ângela é minha reverberação, sendo emanação minha, ela é eu.”. Nascida na palavra, Ângela é o ofegante Sopro de Vida de seu Autor; o ato que o representará; a condução para se chegar ao fim que agora também é o dela: “Eu quero atingir o mais íntimo segredo daquilo que existe”.
Do entrave à chave para a revelação numinosa do que há de mais escondido, as peculiaridades dos protagonistas se mostram a si mesmas de modo a compelir o que surge dessa relação: “O livro de Ângela”, sobre o qual falaremos mais a diante.
III. A intratextualidade.
A atitude criadora de Clarice encontra a ligação simpática com seus heterônomos na medida em que se aproxima do núcleo rudimentar enunciado na estrutura narrativa pela interdependência característica dos protagonistas. É possível enxergar esse vínculo criador-criatura desenvolvido por Clarice na formação das partes constitutivas de sua rede sêmica, como um movimento que extrapola o mundo comum onde se ficciona, visto em Um Sopro de Vida como extensão da natureza própria à escritura transfigurativa que o produz. Diz Ângela:
O objeto – a coisa – sempre me fascinou e de algum modo me destruiu. No meu livro “A Cidade Sitiada” eu falo indiretamente no mistério da coisa. Coisa é bicho especializado e imobilizado. Há anos também descrevi um guarda-roupa. Depois veio a descrição de um imemorável relógio chamado Sveglia: relógio eletrônico que me assombrou e assombraria qualquer pessoa viva no mundo. Depois veio a vez do telefone. No “Ovo e a Galinha” falo no guindaste. É aproximação tímida minha da subversão do mundo vivo e do mundo morto ameaçador.”.
Certamente um leitor que se debruce sobre Um Sopro de Vida com alguma outra experiência de leitura em Clarice deve notar sem maiores dificuldades que na passagem acima A Cidade Sitiada, romance escrito por Clarice Lispector no ano de 1949, tem sua autoria auto-atribuída por Ângela no presente histórico. Tal-qualmente, a descrição de um guarda-roupa pode ser vista em A Paixão Segundo G.H, de 1964, assim como a do relógio Sveglia, descrito por Clarice em O Relatório da Coisa, presente em um compilado de crônicas, contos e produções ficcionais intitulado Onde Estivestes de Noite, de 1974. No mesmo sentido, o telefone – uma alusão ao História de Coisa – e o guindaste de O Ovo e a Galinha, aparecem no trecho como formas que Ângela diz ter encontrado para falar da chamada coisa.
Além disso, o Autor, tal como sua personagem, diz já ter se referido à coisa em um outro momento: “Mas quando essa coisa silenciosa e mágica se avoluma demais a gente desrespeita a lei e grita. Não é um grito triste não é um grito de aleluia também. Eu já falei isso no meu livro chamando esse grito de 'it'”. Há nesse parágrafo a referência a uma outra ficção de Clarice: Água Viva, publicada em 1973, na qual a escritora trata do apenas aparente verbo de ligação “it”.
Neste cenário, também não exigirá muito do seu esforço apreender o efeito instaurado implicitamente a partir do que se apresenta explícito nas citações: a necessidade de transbordamento autoral como recurso representativo da autoimagem no ambiente virtual do texto que determina a interação consubstancial dos personagens, é a paródia da própria operação textual clariciana, metonimizada na narrativa a partir do que Nolasco chama de um “fictício de identidade” autoral. O espelhamento da própria obra se configura no paralelo entre os polos ficcionais e autorais presentes respectivamente no processo de construção, desconstrução e reconstrução da palavra – desenvolvido pelos personagens – e no complexo clariciano formado pelos elementos que se correlacionam na constituição de um enfático sistema de linguagem pautado no mesmo princípio.
Uma vez reconhecida a natureza bilateralmente similitudinária do contato fixado entre Clarice e sua produção, podemos dizer que assim como quando falamos de Ângela também estamos falando de seu Autor, sempre que mencionamos um, outro ou ambos é certo que devemos estar nos referindo indiretamente à origem de onde proveem, isto é, Clarice Lispector. Nesse sentido, a conclusão é aqui entendida como o ponto que determina o tom confessional – no sentido de revelação – do exercício existencial-literário clariciano, no qual os conflitos para a expressão do que resiste em mistério, contrafazem-se sob o irônico disfarce literário e nos orientam para a necessária introspecção da experiência mais adiante minuciada.
Partindo dessas considerações, podemos nos concentrar no produto final da criação clariciana, no qual os pontos de aproximação com a teologia mística do pseudo-dionínio estão mais bem definidos: “O Livro de Ângela”, capítulo que “encerra” seu monumento literário.
IV. A pseudo-representabilidade divina.
Clarice, portanto, escreve um livro sobre alguém que escreve um livro sobre alguém que escreve um livro, e, como é característico de sua escrita, nesse último, o livro de Ângela – que o Autor intitula “História das Coisas (Sugestões oníricas e incursões pelo inconsciente)” –, a escritora deve a elevação da expressão aos seus limites últimos à autonomia com a qual sua personagem Ângela exerce a função verbalizante, longe de qualquer princípio castrativo que a prive de valer-se de seus próprios padrões (ou da ausência destes). Trata-se de um livre estudo da “coisa”, desenvolvido por Ângela a partir da invocação dos sentidos extremos dos termos. O Autor comenta: “Para quem escreve, uma idéia sem palavras não é uma idéia. Ângela é cheia de pré-palavras e desmaiadas visões auditivas de ideias. Meu trabalho é cortar o seu balbucio e deixar anotado apenas o que ela consegue gaguejar.”.
O meio pelo qual a “coisa” nos é gaguejada é a composição de quinze pequenos contos que ocuparão boa parte do livro da agora personagem/escritora. São eles: “Mulher-Coisa”, “Mãe-Coisa”, “Biombo”, “Estado de Coisa”, “O Indescritível”, “Caixa Preta”, “A Casa”, “O Relógio”, “Gradil de Ferro”, “O Carro”, “Vitrola”, “Borboleta”, “Lata de Lixo”, “A Jóia” e “Elevador”. Cada um dos quinze contos norteia-se pela intenção comum de ressonar o chamado “estado de ser” dos objetos, a verdade latente das coisas e dos seres e a conaturalidade entre suas perfeições e o que delas se faz causa. Esta abordagem da “coisa” aponta para um modo de teologar descrito por Pseudo-Dionísio em seu tratado ao expor a noção de teologia positiva, afirmativa ou catafática (gr. κατάφασις = afirmação). Considera-se nessa perspectiva a causa transcendente como causa manifesta e revelada de todos os seres, isto é, princípio do qual todos os seres emanam e no qual tudo está contido por filiação e em congruência, estabelecendo as divinas atribuições às criaturas conforme semelhança. Começando do que é uno às multiplicidades dos seres, as metonímias, imagens e ornamentos acerca da causa altíssima são formadas em proximidade à altura da excelência da trindade supra-essencial, descendentes desta que são. Contudo, as imagens usadas para designar aquele que estabeleceu as trevas como seu esconderijo, inadequam-se inevitavelmente a este propósito, uma vez que mesmo concebidas essas qualidades em seus graus máximos, a realidade para a qual se dirigem sempre extrapolará qualquer tipo de identificação. Diz Pseudo-Dionísio: “É necessário, no que diz respeito à causa transcendente, estabelecer e afirmar todas as atribuições dos seres, enquanto ela é causa de tudo, e principalmente, negar todas elas, enquanto ela está supra-essencialmente acima de tudo”.
Nesse sentido, a constatação de uma falsa ordem, fragmentária e desconexa da distribuição onírica das palavras, crescida em resposta à aquiescência indiferente à nitidez pelo Autor exigida em seu permanente exercício de clareza –, o leva a estabelecer o já nas entrelinhas balbuciado conflito criativo. Ele nos diz:
Descobri por que soprei na carne de Ângela, foi para ter a quem odiar. Eu a odeio. Ela representa a minha terrível fé que renasce todos os dias de madrugada. E é frustrador ter fé. Odeio essa criatura que simplesmente parece acreditar. Estou enjoado de seu Deus vazio que ela preenche com êxtases nervosos.
O Deus vazio, o Deus-palavra de expressões abundantes, mostra-se aqui tão inadequado quanto as imagens pseudo-elevadas daqueles que dizem amalgamar nas ímpias formas e nos positivismos redutores o longínquo daquilo que no totalmente intangível e invisível, suprapreenchem de esplendores suprabelos as inteligências sem olhos.
V. A irrepresentabilidade divina.
Na objeção a um discurso ao revés, prolixo e tartamudeante, a busca pela sistematização, movida por uma resistente ambição artística, o leva a encontrar uma via inversa de ascensão que culmina na forçosa desistência da palavra. O retrato do abandono aos mecanismos de significação é a página em branco deixada pelo Autor sem numeração entre as outras 134 e 136, sobre a qual podemos nos valer da seguinte observação do professor Dany Al-behy Kanaan: “A desistência-deserção da linguagem assinala uma relação de plenitude, na qual a realidade é captada sem artifícios, pondo em comunhão direta ser e coisa”. Ao discorrer sobre este que é o “ponto tenro e nevrálgico” da palavra na obra de Clarice, Kanaan aponta para aquilo que o Autor circunspectamente reconhece:
[...] Há um encontro meu e dessa coisa vibrando no ar. Mas o resultado desse olhar é uma sensação de oco, vazio, impenetrável e de plena identificação mútua. Deus me perdoe creio que estou divagando sobre o nada. [...] Nesse vácuo do nada inserem-se fatos e coisas. O que se vê nesse modo de tornar tudo absolutamente do estado presente, o resultado não é mental: é uma forma muda de sentir absolutamente intraduzível por palavras..
Ante ao mencionado “absolutamente intraduzível por palavras”, o irremissível deixar de ser da personagem Ângela se faz paulatinamente, até que se termine. No fracasso da linguagem, no negar e renegar à personagem, o discurso nos orienta para a segunda parte da distinção metodológica que Pseudo-Dionísio estabelece entre a primeira, teologia positiva, e esta que é a teologia negativa ou apofática (gr. ἀπόφασις = negação). Nesta segunda abordagem, a busca pelos termos que digam sobre Deus para além do Deus em si, deixa de se fazer pela articulação das qualidades do substantivo e se realiza na negação dos adjetivos que d'Ele não participam, isto é, no Deus descrito justamente como sendo aquilo que não é; entende-se, portanto, a causa transcendente exatamente na sua absoluta transcendência, isto é, na separação ontológica desta com seus efeitos exatamente pela ausência de semelhança tanto com os seres mais ínfimos, quanto com os mais elevados. Se alí, na primeira, perquirimos por um caminho imperfeito para o conhecimento do originário, no caminho apofático somos conduzidos à ignorância completa e perfeita, conforme a natureza incognoscível, intangível e invisível do inefável. Com efeito, dar-se plena conta disto, de que de Deus, de sua existência e de sua essência, temos um saber do não saber, implica que estarmos ante Ele, é estarmos sempre ante um ser que nos sobrepassa em todos os sentidos e medidas; que, portanto, não podemos objetivá-Lo, ajustá-Lo às nossas necessidades ou desejos e fazer d’Ele um ídolo.
No reconhecer do necessário negar, no prescindir do código verbal, o Deus como o nada de tudo aquilo que é – sobre o qual sabemos mais o que não é do que o que é e que, em última análise, sequer “Deus” é – nos obriga a abrir as possibilidades de contemplação a uma outra forma de conhecimento: a do desconhecimento místico, terceira da tripla via dionísica de acesso à realidade ancestral a tudo.
VI. O silêncio místico.
Possesso por ignorância total, ao Autor o silêncio é, então, o que resta. Não haveria como ser de outro modo. Diz o pseudo-dioísio: “[...] quanto mais levantarmos os olhos para o alto, tanto mais as palavras são envolvidas pela visão de conjunto dos inteligíveis, assim também, entrando agora na bruma acima da inteligência, encontraremos não brevidade de palavras, mas falta absoluta de palavras e pensamento”.
Referindo-se ao romance “A Paixão Segundo G.H”, João Alfredo Montenegro bem observa o papel do silêncio e o seu emprego na obra de Clarice: “O silêncio, edificado na contemplação, na fina intuição, é mais penetrante e remove os obstáculos colocados, redimensionando no conhecimento autêntico as estruturas ontológicas”. Em “Um sopro de vida” não é diferente. Assim como na obra de 1974, O “verdadeiro silêncio” é aqui visto como parte final de um processo que, uma vez completado, congrega em si, em íntegra e global comunhão, aquilo que o pseudo-dionísio explicará outrora em sua teologia mística: “Assim, no êxtase puramente irresistível e livre, fora de si mesmo e de tudo, serás elevado para o raio supra-essencial da treva divina, tendo afastado tudo e de tudo tendo-se libertado.”.
No abandono de todas as coisas, na superação das dualidades, no desconhecimento libertador e no esquecer-se nadificante, a contemplação mistica daquilo que está para além dos seres, dos atributos, das supressões e de todas as coisas criadas, deixa-se de se fazer nas privações positivas e negativas, e se dá na pura irresistibilidade extática e silenciosa da intimidade mística, numa experiência direta, passiva e unitiva. Nadificado, conclui o Autor na última página do livro: “Quanto a mim também me distancio de mim. Se voz de Deus se manifesta no silêncio, eu também me calo silencioso. Adeus.”.
VII. Considerações finais.
É certo que não há aqui a intenção de afirmar igual natureza aos discursos literário e teológico, tendo em vista suas especificidades que garantem, inclusive, que essa distinção se faça necessária. No entanto, o objeto sobre o qual ambas as abordagens aqui analisadas se dedicam a explorar, nos parece – pelas razões aqui expostas – o mesmo, todavia, formulado a partir seus métodos próprios. Nesse sentido, a aproximação teórica entre os dois discursos – ainda que por quinze séculos separados – é observada não em seus meios, mas em seus fins.
Como foi visto, a problemática da linguagem, de seus limites e possibilidades para a caracterização de Deus, é o fio que conduz tanto a trajetória literária dos personagens claricianos, quanto a teologia do Pseudo-Dionísio. Vimos também que em Um sopro de vida esse caminho é trilhado conforme etapas de um processo são superadas, dando início às seguintes e culminando no silêncio absoluto como enaltecimento superlativo. Com o estudo do Pseudo-Dionínisio pudemos nos dar conta de como essa mesma estrutura se mostra na exposição da tripla via de acesso a Deus, em como a teologia negativa supera a positiva e em como a teologia mística supera as duas. Para que a aproximação se dê nas devidas proporções, abordamos a questão da intratextualidade na obra de Clarice, a fim de que os resultados obtidos contribuam para uma interpretação em que o que é comum à ficção se extenda, em certa medida, à realidade projetante, de modo que a linha tênue que separa Clarice de sua obra se apresente em paralelo à que separa a experiência mística introspectiva de seu relato.
É sob este aspecto que o diálogo interdisciplinar entre a literatura e a teologia aqui proposto vem a contribuir não para uma resinificação do fenômeno literário pela teologia ou vice-versa, mas para a abertura das possibilidades de contemplação conjunta dos fenômenos humanos entendidos em suas particularidades e abordados segundo estas.
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Autor: Ailton Filho