quinta-feira, 22 de setembro de 2016

O PROBLEMA DOS UNIVERSAIS E AS RESPOSTAS DE BOÉCIO E ABELARDO




Assim como em todas as discussões em todas as diferentes épocas na história da filosofia, os debates envolvendo a questão dos universais foram das mais diferentes opiniões e, através delas, hoje temos consideráveis soluções provenientes de distintos filósofos ao longo do tempo.
O problema dos universais compreende a relação entre a ideia e a realidade, o sensível (voce e res) e isso nos leva a princípio à Grécia antiga, onde as primeiras indagações e afirmações a respeito das ideias estavam sendo postas. Não só Platão contribuiu com a formação do conceito de ideia, e com isso dando base para a futura problemática da universalidade, como também Aristóteles foi imprescindível com a sua obra Categorias. E foi a partir de uma passagem da obra Isagoge, realizada por Porfírio, às Categorias, que surgiu explicitamente o problema dos universais. Nessa passagem, Porfírio expõe que “sobre os gêneros e as espécies não direi aqui se subsistem ou se estão simplesmente no intelecto; e, no caso de subsistirem, se são corpóreos ou incorpóreos, separados das coisas sensíveis ou situados nas mesmas, exprimindo os seus caracteres uniformes”. Tendo em vista essa declaração, várias linhas de pensamento adotadas pela Escolástica a fim de solucionar esse questionamento começaram a surgir, dentre elas o realismo, o nominalismo e suas subdivisões.
Na posição de realismo, temos o realismo transcendente (ou platônico) e o realismo moderado (relacionado a Aristóteles). O primeiro implica na existência da universalidade como ideia antes da coisa (ante rem) e independe da matéria para existir, porquanto a matéria remete à imperfeição e ao finalismo, sendo só o mundo das ideias perfeito e eterno; na mesma medida que o segundo afirma que a universalidade está na coisa, do qual é essência. Ambos têm sua atuação na própria realidade, fora do pensamento.
O nominalismo, por sua vez, afirma que o universal não tem existência na realidade objetiva, no mundo sensível e que apenas são nomes dados às coisas e que só existem no intelecto.
No entanto, há uma via entre essas posições que é o intermédio entre o realismo e o nominalismo. Nela, afirma-se que a universalidade depende do real, da coisa para existir no intelecto, não obstante sem o intelecto não haveria universalidade nas coisas, e sim apenas individualidades.
A passagem sobre os universais na obra Isagoge de Porfírio obteve a atenção de Boécio, filósofo romano, personagem que viveu durante a transição entre o fim da antiguidade clássica e a ascensão da idade média. A sua tradução comentada da obra de Porfírio iniciou e fomentou os debates escolásticos sobre a questão dos universais.
Em suas obras, Boécio formula um problema relacionado à existência dos universais ao mesmo tempo em que fornece também uma teoria favorável à existência dos mesmos.
Sobre a inexistência dos universais, ele destaca a pluralidade dentro do uno, que por ter a multiplicidade em si, não pode ser um só. Para essa questão, ele se apoia em dois importantes princípios. O primeiro deles é o princípio da convertibilidade entre ser e uno: o ser, somente por existir, é uno, particular, e o conjunto deles é visto apenas como grupo ou série, não podendo ser extraído nenhum conceito de universalidade deles, porquanto são todos individuais em suas particularidades; o segundo princípio aborda a impossibilidade da divisão do universal, já que tudo que existe é numericamente uno, sendo ele um todo, completo e indivisível.
Outro argumento do filósofo contra a existência dos universais é o regresso ao infinito. A partir da constante multiplicidade nos gêneros e espécies, não havendo unidade numérica absoluta, seria impossível a existência de um gênero último (ou generalíssimo), que abrangesse todos os gêneros e não fosse contido por nenhum outro; assim como também não haveria uma espécie última.
Após a demonstração da possibilidade de inexistência dos universais, Boécio compartilha sua teoria da abstração que manifesta a conivência da existência dos gêneros e espécies nas coisas, mas estes enquanto conceitos não dependem das coisas para subsistir, apenas do intelecto. Para Boécio, os universais existem na realidade sensível e objetiva, mas são compreendidas independentes do corpo através do intelecto. Essa posição tomada por ele é tida como aristotélica, dentro do conceito de realismo moderado.
Segundo sua opinião, não há entendimento sobre o universal se não houver o objeto, o sujeito, visto que apesar de serem incorpóreos, necessitam do real para haver inteligibilidade; e as coisas dentro de uma mesma natureza
formal apresentam semelhanças essenciais, que, ao serem notadas pelo intelecto, são reunidas e forma-se a universalidade que remete à espécie. Por conseguinte, o essencial comum dentre as espécies levam à formação dos gêneros.
O parecer final e a solução apresentada por Boécio é a de que mesmo com a diferença numérica dos indivíduos, há uma semelhança no que diz respeito à essência que os reuni e forma uma unificação lógica, um conceito com base no uso da razão.
Agora voltando ao caminho da problemática e adiantando o passo na história até o século XII, encontramos outro filósofo inovador que apresentou soluções relacionadas ao problema dos universais que foram de extrema importância na história em relação aos universais. A originalidade nos pensamentos de Pedro Abelardo foi notória, ele dava ênfase ao uso da lógica mesmo nas questões teológicas, o que ia de encontro com o tradicionalismo da época.
Adepto fervoroso da dialética, Abelardo foi um mestre aclamado e prestigiado por seus discípulos, porém entrou em contradição com a maioria de seus mestres, inclusive Guilherme de Champoux, renomado realista dos universais e, mais tarde, Anselmo de Laon; foi discípulo de Roscelino, mestre nominalista.
No que diz respeito à questão dos universais, Abelardo responde os problemas apresentados por Porfírio, tendo como doutrina de pensamento o intermédio entre nominalismo e realismo, tomando pra si elementos de ambas as linhas a fim de montar uma própria. Referente ao tema gênero-espécie, ele não tem dúvidas quanto à universalidade dos mesmos. Todavia, questiona se esses universais existem apenas enquanto nomes ou se estão realmente nas coisas. Para Abelardo, a palavra seria a expressão de um objeto real, e que pra conhecer e reconhecer esse objeto, é necessário o uso do intelecto em conjunção com essas palavras, que fazem a ligação dos objetos às suas significações. Logo, para a primeira pergunta de Porfírio sobre a existência dos universais no mundo sensível ou se são apenas objetos de intelecção, ele afirma que os universais subsistem no intelecto, mas se referem aos seres reais.
A segunda questão sobre os universais estimulada em Isagoge é sobre a corporeidade ou não dos mesmos, no que Abelardo fornece uma resposta dupla: é corporal até onde vai à nominação e sua extensão através dos sons emitidos pela voz humana; e incorporal quanto aos significados, visto que estes servem para designar a pluralidade de indivíduos.
Uma terceira indagação de Porfírio expunha o quesito da existência dos universais nas coisas sensíveis ou fora delas e também tem dupla resposta. A primeira delas compreende a inexistência de alguns universais nas coisas do mundo sensível, já que são além da compreeção das nossas percepções sensíveis (exemplo: a alma); a outra, ao contrário, abrange tanto o mundo sensível quanto fora dele. Neste último caso, se analisarmos as formas dos corpos e extraíssemos os universais deles, que não só poderiam estar manifestados no plano sensível quanto também somente em ideia, através da abstração.
Houve outra questão, levantada pelo próprio Abelardo, que teve uma atenção considerável. Essa questão direciona para o seguinte: se não houvesse os indivíduos, haveria os universais? Para a solução desse problema, devem-se analisar os universais de duas formas: a significação enquanto nomes imediatamente referidos ao indivíduo e enquanto conceitos. Na primeira forma, os universais não teriam mais existência, já que não haveria indivíduos a serem significados; no entanto, na segunda forma, eles continuariam a existir, pois mesmo que não haja o indivíduo, o conceito não se perde.
A linha de pensamento que acabou tendo mais força nas discussões sobre a questão dos universais foi o nominalismo, já que o realismo dava vazão à atuação da teologia e por isso foi usada por alguns escolásticos que defendiam a concepção teológica do mundo, enquanto o nominalismo não. As correntes inclinadas a uma concepção nominalista eram consideradas heréticas pela Igreja por conduzir ao relativismo e ao ceticismo. No final do período escolástico, a filosofia já não se importava tanto com as questões de cunho teológico e estava se voltando para outros campos usando e explorando mais as capacidades racionais humanas. Neste sentido, os sistemas filosóficos de Epicuro, Guilherme de Ockham, George Berkeley, David Hume, John Stuart Mill podem ser descritos como nominalistas, pois não atribuem classes de universalidade transcendentes,  mas dão ênfase à pura construção do sujeito observador, assim como a análise linguística contemporânea. Autor: Ailton Filho

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