quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Resenha: Platão e a poesia.


O último livro de A República começa com Sócrates retornando a um tema anterior, o da poesia imitativa. Ele reitera que, embora ainda contente por ter banido a poesia de seu Estado, pretende explicar as suas razões mais profundamente. Tomando uma cama como seu exemplo, Sócrates relata como no mundo existem três níveis em que ocorrem fenômenos: o primeiro e original é o nível de Deus, que cria a cama como uma ideia; o segundo é o carpinteiro que imita a ideia de Deus ao construir uma cama particular; o terceiro e último é o poeta ou, no caso, o pintor, que imita o imitador do Primeiro; ou seja, segundo Sócrates, uma cama feita por um pintor está três graus afastada da natureza, portanto, assim como o pintor, o poeta imita a realidade de uma forma muito distante de sua verdadeira natureza: "Desse modo, o autor de tragédias, se é um imitador, estará por natureza afastado três graus do rei e da verdade, assim como todos os outros imitadores." (PLATÃO, 2007)
O texto está configurado para iniciar um antagonismo entre o discurso poético em geral e o filosófico; e, então, gradualmente movê-lo e endurecê-lo para mostrar o verdadeiro e irredutível conflito entre a filosofia e a poesia trágica.
Homero é oferecido como um infortúnio. O grande poeta que Sócrates lamenta teria ajudado o seu país mais eficientemente se ele tivesse tido um papel político, uma vez que um artista como ele imita aquilo que não entende; o poeta canta sobre o sapateiro, mas ele sabe o comércio de sapatos? De modo nenhum. Imitação, diz Sócrates, é um jogo ou esporte; é brincadeira. Sendo o poeta um imitador da imitação, Sócrates defende: "os poetas fingem saber todos os tipos de coisas, mas realmente sabem nada". Considera-se amplamente que eles têm conhecimento de tudo o que escrevem sobre, mas, na verdade, eles não o fazem.
"Sendo assim não peçamos contas a Homero nem a nenhum outro poeta sobre vários assuntos. Não lhes perguntemos se um deles foi médico, e não apenas imitador da linguagem destes, que curas se atribuem a um poeta qualquer, antigo ou moderno, como a Esculápio, ou que discípulos eruditos em medicina deixou atrás de si, como Esculápio deixou os seus descendentes. De igual modo, no que concerne às outras artes, não os interroguemos, vamos deixá-los em paz." (PLATÃO, 2007).
Neste cenário, a poesia pode ser definida como um gênero literário que produz um discurso estético. Filosofia, por sua vez, pode ser definida como o amor pelo conhecimento e pela sabedoria, e produz um discurso racional. Podemos observar que a diferente natureza de seus discursos parece imensurável. No entanto, percebe-se que ambas produzem um discurso, e, por isso, aqui temos de nos perguntar se esses dois discursos têm o mesmo objeto. A noção de alteridade sustentada pela questão destaca sua diferença e distinção: são estas as marcas de uma oposição, ou que significa que eles se complementam em um objeto comum?
A mímese poética e o banimento da poesia
Estamos entrando em nosso primeiro momento de reflexão, onde poderemos ver que a poesia é o tema da severa condenação pela filosofia. Como vimos a princípio, a poesia tem sua razão de existir fora da filosofia, e, por isso, há um desacordo entre ambas. Devemos perguntar-nos o que é essa discordância. No livro Livro III de A República, Platão denuncia que a poesia não tem nenhuma preocupação com a verdade. A filosofia centra-se em "o que é", ou seja, é a verdade, já a poesia incide sobre "o que parece", isto é, aplica-se apenas à aparência das coisas. Por um lado, o poeta não exerce uma narrativa simples (diegese), exerce uma imitação (mimesis). Isso significa que ele tende a confundir e enganar o seu público-alvo. Além disso, uma vez que a obra do poeta é um mimesis, uma imitação, Platão define-o como "um criador fantasma". Por estas razões, a filosofia é, para Platão, soberana à poesia, e, por isso, as obras dos poetas deve ser controladas sob a autoridade dos fundadores da cidade.
"Precisamos, assim, ver se essas pessoas, tendo deparado com imitadores desta natureza, não foram enganadas pela contemplação das suas obras, não notando que estão afastadas no terceiro grau do real e que, mesmo desconhecendo a verdade, é fácil executá-las, porque os poetas criam fantasmas, e não seres reais, ou se a sua afirmação tem algum sentido e se os bons poetas sabem realmente aquilo de que, no entender da multidão, falam tão bem." (PLATÃO, 2007).
É certo que Platão não só expulsa conteúdos e autores específicos, mas as próprias formas poéticas. Em particular, a forma mimética. A análise mostra que a principal razão para isso está no fato de que valores como logo, independentemente de seu conteúdo, tem um caráter que não pode ser visto do ponto de vista moral, mas puramente estético, o que o opõem ao aparato ideológico no qual a pólis ideal se baseia. Daí a importância da análise de Platão, que não está tanto na avaliação da atividade poética, mas no desvendar estético da obra poética e seus efeitos sobre um programa político exposto cautelosamente ao longo de A República.
A parte racional da alma é calma, estável, e não é fácil de imitar ou compreender. Poetas imitam os piores partes, as inclinações que fazem personagens facilmente excitáveis e coloridos. Poesia atrai naturalmente para as piores partes da alma; desperta, nutre e fortalece estes elementos de base, enquanto há um desvio de energia a partir da parte racional.
Pela razão estabelecida no Livro X, que a poesia alimenta a busca do prazer e obscurece a parte do pensamento, do raciocínio da psique, ou seja, que é imitação do mundo sensível, provocando em nós conflitantes e opostas percepções, ao invés de orientar-nos pelo mundo inteligível de uma razão governado pela lei da (não-)contradição, a poesia corrompe até mesmo as melhores almas. Ela nos engana em simpatizar com aqueles que choram excessivamente, que cobiçam de forma inadequada, que riem de coisas vis. Ela ainda nos incita a sentir essas emoções básicas vicariamente. Achamos que não há vergonha em ceder essas emoções porque estamos entregando-as com respeito a um personagem de ficção e não com relação às nossas próprias vidas. Mas o prazer que sentimos em ceder a essas emoções em outras vidas é transferido para a nossa própria vida. Uma vez que essas partes de nós mesmos foram nutridos e reforçados, desta forma, eles florescem em nós quando estamos a lidar com nossas próprias vidas. De repente, nós nos tornamos os tipos grotescos de pessoas que vimos no palco ou ouvimos falar na poesia épica. Para Sócrates, inclusive, os poetas trágicos são os principais agressores quando se trata de nutrir essa parte da psique que atrai as emoções conflituosas e o engajamento apaixonado.
Apesar dos perigos claros de poesia, Sócrates lamenta ter que banir os poetas. Ele sente o sacrifício da estética agudamente, e diz que ele seria feliz para permitir-los de volta para a cidade se alguém poderia apresentar um argumento em sua defesa.
Filosofia e poesia em seus devidos lugares
No Livro X, Platão finalmente reafirma a educação baseada na filosofia em confronto com a educação baseada na poesia tradicional de motivações, por Platão anteriormente demitidas. Como vimos, Platão justificou a importância da filosofia e do filósofo, relevou a necessidade de definir o papel da filosofia dentro de orientações morais e construções éticas, e agora ele os exibe em relação aos seus rivais, os poetas, concluindo uma argumentação que reconduz esse papel para filosofia, uma vez que mostra, através de Sócrates, que a arte e a poesia se mostram afastadas da realidade:
"Era a esta conclusão que queria conduzir-vos quando dizia que a pintura, e costumeiramente toda espécie de imitação, realiza a sua obra longe da verdade, que se relaciona com um elemento de nós mesmos que se encontra afastado da sabedoria e não se propõe, com essa ligação e amizade, nada de saudável nem de real." (PLATÃO, 2007).
Os pronunciamentos sobre as artes se envolveram em um debate acadêmico que sobrevive até os dias atuais. Muitas sociedades têm de vez em quando adotado as idéias de Platão, a fim de defender a censura prática de certas manifestações artísticas, alegando que elas manifestam temas que são moralmente corruptores, que "enviam a mensagem errada" aos cidadãos cujo poder de raciocínio é fraco, na melhor das hipóteses, ou são facilmente manipuláveis. Um ponto de vista totalmente oposto pode ser adotado se pensarmos na arte como sendo essencialmente apolítica e amoral, e que, por isso, não deve ser colocada sob a alçada de qualquer censura; todavia é difícil de imaginar manifestações artísticas que não tenham sido influenciadas por questões morais ou políticas, seja no entorno de sua própria identidade estética, seja no sentido que carrega, ou até na expressividade, fruto da experiência do artista.


REFERÂNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret, 2007
VILLELA-PETIT, Maria da Penha. Platão e a poesia na República. KRITERION, Belo Horizonte, nº 107, Jun/2003, p. 51-71. Autor: Ailton Filho

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