quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Resenha: A poesia em Aristóteles



A Poética é entendida por Aristóteles de duas maneiras diferentes. Por um lado, refere-se à arte como fabricação ou produção de instrumentos ou objetos para um propósito particular. Por outro, faz alusão às artes não utilitárias ou, simplesmente, belas artes. As últimas estão destinadas a produzir prazer ou agrado àquele que as experimenta em formato de música, poesia, dança, pintura ou escultura. A essência dessas artes é a imitação da realidade, o que gera prazer e admiração. É no segundo sentido que Aristóteles usa o termo poética em sua obra “Arte Poética”.  

Aristóteles argumenta que a poesia trágica, a comédia, a poesia ditirâmbica e aquelas que são acompanhados por flauta e cítara, têm em comum o fato de que ambas são imitações. No entanto, ele as diferem por três razões: em primeiro lugar, imitam por meios diversos; segundo, imitam objetos diversos; terceiro, imitam de maneiras diferentes. Os diferentes meios de comunicação utilizados para imitar são o ritmo, a palavra, ou linguagem, e a harmonia. Algumas artes se utilizam de todos esses meios, mas se diferenciam porque umas usam todos, outras alguns, outras o fazem simultaneamente e outras em diferentes momentos.   Em relação ao objeto imitado, os homens que o poeta imita podem ser melhores, piores ou iguais em sentido moral.

Segundo Aristóteles, a diferença entre a tragédia e a comédia é que a primeira representa melhor (bons e nobres) os homens que imita, enquanto a segunda os representa piores do que são. A terceira distinção que Aristóteles faz a respeito da forma de imitar, refere-se à diferença entre a poesia dramática e a épica. Na épica com os mesmos meios ou recursos para representar a mesma coisa, é possível falar dos fatos através de uma personagem (indiretamente) ou colocá-los na boca do autor (diretamente). Na dramática os imitados se apresentam como pessoas agindo por si mesmas, de modo que o autor está oculto.  

Para Aristóteles, a poesia surge a partir da existência de dois fatores ou causas naturais no homens: primeiro, a capacidade e tendência a imitar e apreciar as imitações; segundo, a capacidade de harmonia e ritmo. Os homens nobres e virtuosos imitam ações dessa mesma natureza. Enquanto os homens comuns fazem sátiras e paródias. Assim, os poetas nobres compõem tragédias e os mais vulgares comédias. A comédia procura imitar as traços mais ridículos e feios. A tragédia envolve todos os elementos da épica, mas a épica não envolve todos os da tragédia. A tragédia se diferencia do épico quanto à extensão, à sua natureza narrativa e ao tipo de metro que utiliza. Elas têm em comum o fato de que são imitações métricas de ações elevadas.

Em seguida, Aristóteles se concentra na tragédia e  a define como a imitação de uma ação elevada e perfeita, de uma extensão particular, através de uma linguagem ornamentada que tem ritmo, harmonia e canto em cada parte, por meio da ação, que conduz através da compaixão e do terror, à purificação dessas paixões. Segundo Aristóteles, os elementos essenciais ou qualitativos da tragédia são seis: a trama, os personagens, a linguagem, o pensamento, o espetáculo e o canto.  

Na continuação Aristóteles se dedica a tratar de cada um destes elementos. Quanto ao argumento, ele pode ser simples quando a ação é unitária, contínua e as mudanças ocorrem sem sem reconhecimento e sem peripécia. No entanto, a mudança no complexo ocorre pelo reconhecimento, por peripécia ou ambos. A peripécia é a transformação do ator em seu oposto, ou seja, quando uma ação lança o oposto do que você deseja alcançar. O reconhecimento refere-se à mudança que ocorre na passagem da ignorância ao conhecimento, que gera amor ou ódio nas pessoas. Isto pode ser de diferentes tipos. O primeiro tipo de reconhecimento é o menos artístico, que é o produto de uma marca. Isso pode ser natural ou adquiridos. A segunda forma de reconhecimento é o cenário para um poeta, que não é considerada artística. O terceiro tipo é produzido pela recordação ao ver alguma coisa, e o quarto provem de um silogismo.

A peripécia e o reconhecimento são os dois lados do argumento. Para Aristóteles, a mais bela trama de uma tragédia deve ser complexa, não é simples, representando acontecimentos terríveis e lamentáveis, características peculiares destas. As partes da tragédia podem ser divididas em prólogo, episódio, êxodo e coral. Estas peças são comuns à toda tragédia. No entanto, existem outras partes como a música cênica, por exemplo.  Os caracteres são o segundo elemento qualitativo da tragédia que apresenta Aristóteles. De acordo com ele, há quatro aspectos que devem ser levados em conta o respeito deles. É importante saber que com “caracteres” Aristóteles refere-se aos traços de personalidade ou de caráter das personagens. O primeiro é que sejam bons. O segundo é uma questão de adequação dos caracteres. Nesse sentido, não é apropriado para uma mulher ter um caráter viril e temível. O terceiro caractere é a semelhança e o quarto é a consistência.  

Toda tragédia tem meio e fim. Segundo Aristóteles, existem quatro tipos de tragédia: a complexa, a ntetética, a ética e a de entretenimento. Da mesma forma, você não pode construir uma tragédia com um sistema épico, isto é, uma pluralidade de relatos característicos da epopeia. No que diz respeito ao pensamento, Aristóteles não o põe em discussão, apenas se limitando a dizer que eles correspondem a todos os efeitos que pretendem atingir através de palavras ou de fala.

Em relação a linguagem, Aristóteles a dividiu em oito partes: elemento (letra), sílaba, conjunção, articulação, substantivo, verbo, caso e sentença. A virtude da linguagem é, para Aristóteles, ser claro sem ser trivial. A linguagem ou discurso não pode ser formado apenas por palavras simples, ou apenas com metáforas. Portanto, a tarefa do poeta é misturar ou combinar todos esses recursos linguísticos.    

Em relação à epopeia e à tragédia, estas têm em comum que os argumentos devem ser desenvolvidos de acordo com a exigência da tragédia, ou seja, de forma dramática. Estas dizem respeito a uma única ação perfeita e devem ter um começo, meio e fim. A  primeira se difere da segunda porque é clara e tem unidade de ação (narra uma só coisa, como a Guerra de Tróia, por exemplo). Enquanto isso, a tragédia pode contar uma multiplicidade de ações com um ou mais protagonistas.   

As partes da epopeia e da tragédia são as mesmas, exceto o espetáculo e o canto que correspondem ao último. Aristóteles enfatiza duas diferenças entre estes dois gêneros. O metro da epopeia é o hexâmetro, ou verso heroico, enquanto a tragédia utiliza nas partes recitadas os trímetros iâmbicos e tetratâmicos. Quanto à extensão, o limite da tragédia é marcado pelo período necessário para que se produza a peripécia. Para Aristóteles, a tragédia só se pode realizar uma ação de cada vez, sem espaço para cenas paralelas. A epopeia, ao contrário, suporta variações mais lexicais.  

Aristóteles concebe que, assim como o pintor, o poeta tem a tarefa de reproduzir imagens. Ao fazê-lo, o poeta imita a realidade de acordo com três modalidades. A primeira é a realista, segundo a qual o poeta apresenta as coisas como elas são no presente ou como eram no passado. A operativa e fantástica é quando o poeta representa coisas como o indivíduo ou a sociedade acha que eles são. O terceiro modo é o idealista, aqui o autor o apresenta como ele deveria ser.

Mais tarde, Aristóteles distingue excelência ética (sócio-político) de uma excelência literária e poética. Isto significa que uma obra literária do ponto de vista sócio-político pode ser amplamente aceita, no entanto, sem ser considerada como boa literatura e poesia, e vice-versa. O poeta pode cair em dois erros. Um de natureza substancial, quando não é possível imitar o que pretende imitar. O outro de caráter acidental, que se refere à falta de uma ciência ou arte determinada.   

Para alguns filósofos antigos, incluindo Platão, a tragédia era menos respeitável, uma vez que foi dirigida a um público inculto e vulgar. Em vez disso, a epopeia foi destinado a pessoas educadas, portanto, não precisa de recursos visuais, eram capazes de pensar, imaginar e abstrair. Aristóteles passa a apontar que a tragédia tem dois elementos que não se fazem presentes na epopeia: o espetáculo e o canto). Além disso, a unidade da epopeia é menos robusta do que a da tragédia. A tragédia é mais intensa conforme expressa diretamente e em primeira pessoa.

O Cinema e a Tragédia

Se pensarmos na tragédia como sendo “[...] a imitação de uma ação importante e completa, de certa extensão; num estilo tornado agradável pelo emprego separado de cada uma de suas formas, segundo as partes; ação apresentada, não com a ajuda de uma narrativa, mas por atores, e que, suscitando compaixão e terror, tem por efeito obter a purgação dessas emoções.” - como consta na tradução feita por Pietro Nassetti -, talvez seja possível estendermos a concepção aristotélica à contemporaneidade.

É certo que dentre os meios com os quais a tragédia é produzida, no século IV a.C Aristóteles não relaciona a arte cinematográfica. Desse modo, como o cinema seria tratado por Aristóteles? É a pergunta que faz o filósofo brasileiro Gonçalo Armijos Palácios faz no texto “Digressões sobre Aristóteles, arte e poesia”. Provavelmente a resposta a esta questão pode ser obtida no modo como filósofo grego trata da arte teatral em sua Arte Poética. Dito de outra maneira, deve haver filmes que refletem características arquetípicas da tragédia clássica. A forma de classificação do cinema, no entanto, sustenta Palácios, não deve se dá tal como acontece com o teatro, uma vez que se realizam por meios distintos, no entanto,tanto as comédias como as tragédias, ou os dramas em geral, podem ser levados a um cenário próprio e apresentados de formas diversas. Assim, se aplicamos o que diz Aristóteles sobre a comédia e a tragédia ao cinema, tanto filmes cômicos como os dramas se encaixariam na concepção do discípulo de Platão.” (PALÁCIOS, 2011).

Nesse sentido, a fábula medieval “A Filha de Töre em Vangél”, de 1673, pode ser considerada uma oba de arte. Da mesma forma, o filme “A Fonte da Donzela”, de 1959, baseado nesta fábula, segue o modelo relativamente preciso de como uma história dramática deve ser.

A Fonte da Donzela

Dirigido pelo sueco Ingmar Bergman (1918 - 2007) e roteirizado pela também sueca Ulla Isaksson (1916 - 2000), “A Fonte da Donzela” (Jungfrukällan) conta a história de uma típica família sueca do século XIV. A família vive em uma fazenda grande ao leste das montanhas, protegidos do frio e com um certo conforto. Herr Töre (Max von Sydow), o chefe da casa, e Märeta Töre (Birgitta Valberg), sua mulher, cuidam de Ingeri (Gunnel Lindblom) como se fosse uma filha, mas os cuidados são absolutamente inferiores aos da mimada e única filha Karin Töre (Birgitta Pettersson).

Uma característica marcante dos personagens é a religiosidade. Orações constantes, sacrifícios, costumes e valores demonstram um cristianismo fervoroso. Uma que parece não compartilhar da mesma religião é Ingeri, uma personagem curiosa, aparentemente revoltada, exala ódio do olhar aos gestos, clama por um Deus de nome Odin. Ela demonstra uma relação perturbada com Karin, com elementos que vão da cumplicidade à inveja. Enquanto Karin recebe um tratamento equivalente ao de uma princesa, cabe à Ingere o comprometimento com as tarefas domésticas a ela imputadas.

Com a benção do casal Töre, as duas iniciam uma viagem à igreja do outro lado da floresta para levar as velas da Virgem Maria que serão acesas na missa matutina em celebração à Sexta-Feira da Paixão. Montadas em seus cavalos, seguem o percurso. Num dado momento da jornada, Ingeri resolve subitamente desistir da viagem, alegando medo de prosseguir pela floresta escura. Antes disso, ela já havia comentado com Karin sobre os perigos que aquele lugar oferece. Karin, então, segue viagem sozinha. Ao ser auxiliada por um feiticeiro que reside em uma cabana no meio da floresta, Ingeri trás à tona o motivo de seu desespero: supostamente ela havia encomendado trabalhos a serem oferecidos à Odin por este homem, com o intuito de que algo de ruim acontecesse à Karin.

Em um ponto do trajeto, Karin esbarra com três irmãos que vivem na floresta pastoreando algumas cabras. Ela resolve então parar um pouco para oferecer-lhes algo para comer. Observando cada movimento de Karin estava Ingeri, escondida para que não fosse percebida. Os dois irmãos mais velhos deixam transparecer que tinham algo a mais além da fome, mas ingenuamente Karin serve-lhes pão, carne e queijo.  Eles comem, bebem, riem. No entanto, o que se viu a partir daí foi uma tragédia pousar sobre a menina Karin: os dois irmãos mais velhos estupram-na, roubam-na e matam-na logo depois. O irmão mais novo assiste às cenas de violência revestido de perplexidade, e Ingeri sem esbanjar uma reação que impedisse aquilo de acontecer, vendo ali o seu pedido feito à Odin se realizar.

Os homens fogem para longe, encontrando refúgio em uma casa grande. O que eles não sabiam é que trata-se justamente da casa da família Töre. São recepcionados por Herr, que não desconfia de nada. Convidados a juntarem-se à mesa e passarem a noite ali mesmo na sala de refeições. Em dado momento, um dos irmãos oferece à mãe de Karin vestes que diz ser de uma irmã recentemente falecida. No entanto, trata-se do vestido que Karin usara para viajar. Märeta se dá conta, com isso, de que algo de ruim havia acontecido à sua filha e que esses homens têm ligação direta com isso. Diz para eles que falará com o marido sobre a possível compra, não deixando transparecer o que sentira ao ver as roupas de sua filha ali. Comunicado sobre o ocorrido, o pai da menina providencia sua vingança. Prepara seu punhado e espera que os três despertem do sono. Após acordarem, entram em luta corporal com o pai, que acaba por matar os três, inclusive a criança.

Pai, mãe e demais familiares resolvem então buscar o corpo de Karin com a ajuda de Ingeri. Ao chegarem ao local do crime, se deparam com o corpo jogado sem vida ao chão, gerando uma comoção geral. O pai desabafa toda sua revolta aos céus, questionando a razão de tamanha tragédia. O filme é finalizado com a cena em que uma fonte de água surge abaixo do corpo de Karin, erguido antes disso por Märeta.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

A FONTE DA DONZELA. Jungfrukällan. Ingmar Bergman. Svensk Filmindustri. Suécia: 1959. EUA: Janus Films, 1982. DVD. 86 min, p&b.

ARISTÓTELES. Arte poética. São Paulo: Ed. Martin Claret, 2003.

PALÁCIOS, Gonçalo. Digressões sobre Aristóteles, arte e poesia. Jornal Opção, Goiânia, 27 fev. 2011. Nº 1860. Autor: Ailton Filho

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