sábado, 17 de março de 2018

Santo Anselmo e Gaunilo


O presente texto tem como objetivo esquematizar o argumento ontológico de Santo Anselmo de Cantuária (1033-1109), assim como expor as críticasfeitas porGaunilo (994-1083), que foi um monge Beneditino na França, e as respostasde Anselmo. Dessa forma, o artigo apresentará os argumentos de Anselmo, as refutações de Gaunilo e a réplica do filósofo.
Em sua obra“Proslógio”, Santo Anselmo, que foi um importante autor medieval, expõe sua prova ontológica para a existência de Deus, que posteriormente é contestada por Gaunilo. A Filosofia de Anselmo é de extrema importância na Filosofia e aborda temas como a linguagem, a teologia e a epistemologia.
            A tese de Anselmo é a de que Deus é “um sero qual não se pode pensar nada maior”.A existência de Deus está implícita na proposição, uma vez que “um ser o qual não se pode pensar nada maior” existe na inteligência de quem compreende a frase. A da defesa da tese de Anselmo emerge da exposição do significado da frase.
Segundo o autor, Deusexiste tanto na inteligência como na realidade, já que não é possível que Ele seja o que a frase diz que Ele é e lhe faltasse o atributo da existência. Ou seja, se ele é o que a frase diz que ele é, não pode faltar a Deus o que nós, seres finitos, possuímos. Ele se tornaria, segundo Anselmo, o ser o qual é possível pensar algo maior.
Anselmo teoriza no capitulo terceiro que não é possível sequer pensar que Deus não existe. Para ele, dizer que Ele não existe só é possível na fala de quem não compreende a proposição citada acima. Tomando como ponto de partida a não existência de Deus, seria possível pensar algo maior que ele. Mas Deus é o limite máximo do pensamento e, se o pensamento alcança coisas existentes, não é possível pensar que Deus, sendo maior que tudo que existe, não exista. Anselmo diz que quem pensa o contrário carece de raciocínio.
Negar a existência de Deus, para o filósofo, é uma interpretação equivocada.Quando possuímos algo no coração, também o possuímos em pensamento. Se o insipiente disse em seu coração que Deus não existe, houve um erro, pois quando ele afirma isto em seu coração, expressou o que não é possível pensar. Para ele, uma coisa é falar pela forma do uso da palavra, ou a palavra pela palavra. Por outro lado, a outra maneira é compreender o significado daquilo que é dito. Assim, ele distingue forma de conteúdo.
Em contraponto com essas ideias,Gaunilo expõe no capitulo Livro em favor de um insipienteque quem nega ou duvida da existência de uma natureza a qual não é possível pensar nada maior já a possui na inteligência pela compreensão do sentido daquilo que a frase diz.
            Para refutar o segundo argumento de Anselmo, Gaunilo expressa que podem existir pensamentos variados na mente e compreendidos por ela e, mesmo assim, não passarem de pensamentos falsos ou de coisas inexistentes.O ponto é que o fato de esses pensamentos estarem na inteligência não implicaria na existência deles apenas pela compreensão dos mesmos. Dessa forma, Gaunilorelaciona o argumento de Anselmo “O ser o qual não se pode pensar nada maior” aos pensamentos falsos e inexistentes, afirmando serem ambos da mesma natureza. Ele afirma que se não tivessem a mesma natureza, o argumento de Anselmo seria válido.
            Gauniloexpressa que a pintura não se assemelha a natureza do Ser descrito por Anselmo, pois enquanto ela está na inteligência do artista, Deus não está. Além disso, diante do argumento de que “o ser o qual não é possível pensar nada maior” existe na inteligência e necessariamente existe na realidade, o crítico afirma que essa necessidade não é irrefutável, uma vez que é possível conceber coisas inexistentes na inteligência, como a imagem de um homem inexistente formada pela noção geral da espécie humana. Portanto,Gaunilo coloca em dúvida que o Ser exista na inteligência e na realidade e concebe a “existência” desse Ser de maneira equivalente a existência da representação de uma palavra.
O ser o qual não é possível pensar nada maior é comparado por Gauniloa uma Ilha inexistente, mas que é descrita como a melhor de todas. Quem diz que a ilha é a melhor de todas, afirma que a condição para ela existir é exatamente essa. Pois se ela existe na inteligência, existe também na realidade, caso contrário não seria a melhor de todas. No entanto, Gaunilo coloca que ela não existe e indaga se não seria estúpido aquele que acredita em sua existência.
            Gaunilo põe em questão a impossibilidade colocada por Anselmo de pensar que Deus não existe. Ele argumentaque se não fosse possível, por que Anselmo se esforça para responder às refutações de quem nega suas alegações?
A questão levantada por Anselmo de que Deus é um ser que não pode ser pensado como não existente é questionada por Guanilo. Segundo ele, sua própria pessoa não pode ser pensada como não existente, o que implica que Deus não é o único que não pode ser pensado como não existente.
Levantando o tema da “espécie e do gênero”, presente na corrente dos universais, agora o autor diz que o ser não pertence a nenhuma dessas categorias. Nem em si ou por si (substância), inviabilizando, dessa forma, a possibilidade filosófica da tese de Anselmo, a qual trata de provar um tipo de existência que não pode ser ajustada a teoria dos universais.
Anselmo explica a existência de Deus como sendo sem princípio ou fim. Se Deus não está no tempo, como nós estamos, “O ser o qual não se pode pensar nada maior’ não pode ter começado e nunca terminará, pois isso é o que se pode pensar no limite do pensamento sobre quem é Deus. O filósofo medieval reafirma que se é possível pensa-lo como existente e é necessário que exista, não como nós existimos, mas como “O ser o qual não se pode pensar nada maior” existe.
Não é possível conceber a existência necessária (na inteligência ou na realidade) daquilo que permite ser pensado como existente ou não existente, mas quando enunciamos a frase “O ser o qual não é possível pensar nada maior’, eliminamos, consequentemente, a possibilidade de concebê-lo como não existente, tanto na inteligência, através da compreensão, como na realidade.
Sobre as implicações do argumento, Anselmo afirma em sua demonstração, o modo pelo qual Deus existe, ou seja, fora da temporalidade e no limite da nossa razão: “Tudo aquilo, porém, que pode ser pensado e não existe realmente, se viesse a existir, não seria “O ser o qual não se pode pensar nada maior”(ANSELMO,1984,p.136.).
Anselmo fala da impossibilidade de não compreender (OSNPPNM), já que no caso contrário, não saberíamos de nada disso que está sendo falado. Pois desconheceríamos essas propriedades d’Ele.Propriedades integradas à frase em questão e que estão implícitas nesta. Negadas apenas por quem não a compreende em sua inteligência.
Quem pensa que esse ser não existe, diz Anselmo, pensa o que não pode ser pensado acerca da frase “O ser o qual não se pode pensar nada maior”. Não lhe é conferida existência ordinária, mas extraordinária no limiar daquilo que é cognoscível. Segundo ele:

Pois, sem dúvida, podem ser pensadas como não existentes todas ou separadamente aquelas coisas que têm princípio e fim ou que constam de partes, e tudo aquilo que, como já disse, não se encontra completo num determinado lugar ou tempo. Mas o ser que não possui princípio nem fim, que não é composto de partes e que o pensamento encontra completamente inteiro por toda a parte e sempre, não admite ser pensado como não existente. (ANSELMO p.140).

Nesta passagem, Anselmo fala da inexorabilidade da frase e suas implicações e diz, entre outras coisas, que Deus, que é atemporal e eterno, não pode não existir.Mais adiante, o filósofo demonstra que não se pode compreender aquilo que é falso, uma vez que compreende-se apenas o que é verdadeiro: mesmo quando compreendemos uma falsidade, o fazemos compreendendo a verdade que se esconde nela.
Com relação à crítica relacionada à espécie e ao gênero questionados por Gaunilo, Anselmo diz que categoria em que Deus pode se encaixar encontra-se no “bem” maior que se pode esperar d’Ele. Assim, ele destaca que há bem maiores e bem menores.Para Anselmo, a argumentação de Gaunilo era parte de um pressuposto equivocado. Ele o refuta, retomando argumento central, eexpondo:
Consequentemente, quando se pensa “o ser o qual não se pode pensar nada maior” e, ao mesmo tempo, pensa-se que ele pode não existir, não está sendo pensado o ser o qual não se pode pensar nada maior, porque é impossível pensar e não pensar ao mesmo tempo, uma mesma coisa. Por isso, quem pensa “o ser o qual não se pode pensar nada maior”, não pensa um ser que pode não existir, mas um se que não pode não existir. É necessário, portanto, que o ser que ele pensa exista, porque tudo aquilo que pode não existir não é aquilo que ele pensar.(ANSELMO p.146)

Portanto, Anselmo inclui num novo elemento em sua argumentação quando caracteriza a atemporalidade de Deus: não se pode afirmar tampouco negar sua existência. Além disso, a lógica implícita na frase torna ilimitados os modos de ser de Deus. O limite aparece apenas em nossa capacidade de pensa-lo. É possível concluir que Anselmo defendeu seus argumentos com minúcia e formalidade.



Referências Bibliográficas:
 ANSELMOMonologionProslogion, A Verdade, O gramático.. São Paulo: Editora Abril, 1984. (Os pensadores)

Descartes e o Cogito ergo sum


            Descartes começa o primeiro capitulo e parte das Meditações Metafísicas "Das coisas que se podem colocar em dúvida", afirmando que por muito tempo se enganara e questionando seus próprios meios de obtenção do conhecimento seguro. Para isso, diz que até então seus princípios foram mal assegurados, fato que lhe rendera apenas dúvidas e incerteza.
            Desse modo, a filósofo busca constância e firmeza, não apenas para satisfação e segurança individual (pois a dúvida tinha em vista apenas refletir sobre ele próprio), mas também porque ambiciona alicerçar todas as ciências sobre bases sólidas e seguras, em vista de provar a veracidade daquilo que não pretende mais chamar de simples opiniões. Ele se desfaz, para isso, de suas falsas e incertas opiniões formadas ao longo dos anos, para começar tudo desde os fundamentos.
            Descartes relata que esperou muito tempo para cumprir tal tarefa, já que não encontrava-se maduro e preparado o suficiente para fazê-lo. Por outro lado, agora mostra-se disposto a despojar-se das suas antigas opiniões. Toma, então, a decisão de sistematizar suas dúvidas acerca do que é manifestamente incerto ou duvidoso.
            A dúvida hiperbólica é assim engendrada numa decisão. Nesse sentido, no primeiro momento do texto a) ele reconhece que possui falsas opiniões b) se desfaz dessas opiniões c) começa tudo de novo desde os fundamentos.
            Descartes trata como falso aquilo que é duvidoso e incerto, pois, segundo ele: o que nos enganou uma vez, não merece crédito. Dessa maneira, pretende estabelecer uma relação entre o que é falso, incerto e duvidoso, duvidando de tudo o que é possível duvidar afim de solidificar os alicerces das suas opiniões, e crenças, convertendo-as em certezas.

            A dúvida radical visa que seus resultados sejam verdadeiros. Por isso, é importante não pensar que as dúvidas são fingidas, pois elas estão comprometidas seriamente em extrair os frutos que restarem (verdades) do processo de exclusão.
            O primeiro grau da dúvida hiperbólica é o argumento dos sentidos. Descartes fala nele que experimentou que muitas vezes os sentidos lhe enganaram e que pensava ser prudente nunca confiar em um dia o enganou.
            Para ilustrar como os sentidos podem nos enganar algumas vezes, experimentemos, por exemplo, a visão de uma pessoa localizada em nossa frente, vemos sua face, seu tórax e abdômen vestidos ou desnudos, mas não conseguimos observar seu corpo verdadeiro em todos os seus ângulos, ou seja, sua totalidade, isto é, a visão se limita apenas a uma parte dessa totalidade, nos enganando.
            Outro exemplo, que se refere ao sentido da audição pode ser elucidado pela seguinte situação: ao ouvirmos uma pessoa chorar, podemos pensar que as lágrimas são de tristeza, quando na verdade são de alegria.
            Outro exemplo, que ilustra outro sentido: o do cheirar; pede um pouco mais de esforço, mas pensemos nos fumantes que quando perguntados porquê fumam, respondem que o fazem porque gostam do cheiro de sua fumaça quando na verdade são viciados em nicotina (substância  presente no cigarro). Esse exemplo pode repetir-se no rapé, que também contém nicotina, ou na cocaína, entre outras.
            Para ilustrar que o sentido do tato também pode nos enganar, pensemos apenas sentir que alguém nos toca na extremidade enquanto estamos de costas e nesse momento achamos que é nosso irmão João mas quando nos viramos constatamos que se trata do nosso amigo José.
            Finalmente, resta-nos o sentido do saborear, e nesse sentido, pensemos que ao comermos um bolo, pensemos que ele contém leite de vaca, açúcar refinado, chocolate e farinha de trigo com ovos. Mas quando perguntamos a cozinheira qual a receita, ela nos diz que leva leite vegetal, adoçante natural, cacau puro farinha de aveia, tofu, óleo e água. Ou seja, o paladar também pode nos enganar.
            O segundo argumento apresentado por Descartes em Meditações Metafísicas é o dos sonhos. Para esse argumento, o sonho e a vigília não são claramente distintos, pois quando dormimos temos costume de representar as coisas da mesma forma que representamos quando acordados.
            Isso leva Descartes a se perguntar se não está dormindo quando está acordado. A realidade se mostra em ambas as maneiras de ser e embora nos enganemos ao sonhar, nós também o fazemos acordados.
            Por conta dessa evidência, Descartes levanta a hipótese de que não há dicotomia de validade ou falsidade entre o sonho e a vigília. Nesse sentido, Descartes relaciona ambas as realidades dizendo que as coisas que fazemos e nos são mostradas nos sonhos parecem reais, mas, como se sabe, não passam de ilusões.
            Além disso, Descartes unifica a realidade nos sonhos à realidade presente em criações artísticas, pois ambas encontram referencias no que se entende por mundo real (em vigília): como, por exemplo, o azul pictórico é sempre o mesmo azul de quando estamos acordados.
            Dessa forma, Descartes encontra correspondências entre o mundo real e o mundo dos sonhos: é possível encontrar objetos simples e universais sendo representados nos sonhos, são eles: a) quantidade ou grandeza e seu número, b) espaço, c) tempo.
            Esses princípios são percebidos em ambas as realidades (sonho e vigília). Tanto no sonhos como na vigília dois mais três são cinco e uma esfera é sempre esférica, assim como um quadrado tem sempre quatro lados, e um triângulo, três. Contudo, o filósofo afirma que essa é a razão pela qual ciências que tratam de coisas compostas (Física, Medicina, Astronomia) não oferecem tanta certeza como as ciências que tratam de coisas simples (Aritmética e Geometria).
             Nesse sentido, o conhecimento geométrico e aritmético encontrados nos sonhos são a prova de que eles não são totalmente ilusões, pelo menos não tanto quanto a realidade em vigília a ponto de separar-se completamente dela.
            Para Descartes, Deus pode ser enganador no sentido de permitir o engano no mundo, porém ele enfatiza sua bondade soberana. Não é porque permite o engano que Deus seja mal, pois ele pode ser enganador por não querer que nos decepcionemos com as desilusões causadas pela constatação das verdades que ainda não possuímos. Dessa maneira, faz parte da sua bondade permitir o engano.
            Assim, Descartes converte o termo do "Deus enganador" em "Gênio maligno". Segundo o filósofo francês, esse gênio o faz acreditar em seus sentidos, que são ilusórios. Dessa forma, ele suspenderá seu juízo quanto a crenças relacionadas aos sentidos afim de cuidar para que nenhuma crença falsa lhe seja imposta pela industria do gênio maligno.
            Descartes encerra o capitulo descrevendo um tipo de preguiça que o assola e que lhe tira a coragem para seguir com o laborioso esforço de buscar a luz e o conhecimento da verdade.
            Na segunda parte das meditações, Descartes descreve seu sentimento que o enche de dúvidas. E, embora esteja se sentindo assim, continuará como antes: se afastará das coisas e opiniões duvidosas como se fossem falsas e seguirá assim até conseguir alguma certeza. Não importado se a primeira certeza seja a mais importante ou "mais alta certeza", mas tão somente que seja a inauguradora das certezas.
            Dessa forma, recomeça sua reflexão supondo que tudo o que vê é falso: pensa não apenas que não possui corpo e sentidos mas desacredita a realidade aparente de tal forma que supõe que tudo o mais são ficções do seu espírito (mente), restando unicamente a incerteza do mundo.
            Apesar disso, não vê necessidade em recorrer à divindade para encontrar as causas da sua dúvida, já que ele próprio se vê capaz de produzi-las. Isso o leva a questionar se ele não é alguma coisa, pois era capaz de algo e assim seria algo.
            Mais: será que sua existência dependia dos sentidos e do corpo? Essa possibilidade não contradiria a afirmação diante da qual  não há nada no mundo de certo, incluindo ele mesmo? certamente não. Segundo o relato do seu próprio pensamento, sua existência é indubitável.
            Levando em consideração a sua epifania anterior de que existe um gênio maligno que o engana sistematicamente, Descartes afirma que há algo de que não pode se enganar: de que ele é algo enquanto pensa ser esse algo. Assim, Descartes afirma que é algo e que existe. Ele diz que isso é verdadeiro todas vezes que é concebido ou enunciado em seu espírito, alma, mente.
            Essa frase representa, neste momento de sua obra, um transição que irá analisar a natureza do eu-existente-cartesiano. Assim, ele se volta para sua auto-suficiência capaz de encontrar verdades. O que, alias,  reflete o título dessa parte das meditações (Meditações Parte II) que é: "Da natureza do espírito e de como ele é mais fácil de conhecer do que o corpo".
            Descartes sabe que é, mas não sabe o quê é. Qual o conteúdo da existência que afirma ser verdadeira? é partindo desse ponto que Descartes sugere sua investigação metódica a fim de definir-se verdadeiramente. Para isso, se despoja, como antes, de todas  as suas opiniões e verdades infundadas.
            Agora, Descartes busca o que é indubitável em ser um homem: aquilo que é o homem, o que é o define verdadeiramente. Será sua racionalidade? O filósofo discorda desse método de investigação e realinha-se com o método de dúvida, no qual acredita que será mais bem sucedido.
            Dessa forma, primeiramente, ele considera apenas a si mesmo, a saber: que ele é um corpo. Para ele, isso o leva as relações entre sua alma e corpo. Mas o que é uma alma ?- Pergunta. Será como o vento?. O corpo, nos diz ele, não pode ocupar dois lugares ao mesmo tempo e é identificado como uma figura. Ele pode ser tocado pelo tato, visto pela visão, cheirado pelo olfato, etc. Além disso, pode ser afetado e movido.
            Na procura por sua essência, ou daquilo que o defina segundo as coisas as quais ele não pode duvidar, quais são os atributos que lhes pertence? caminha e alimentar-se, mas visto que não possui corpo algum, não podemos aceitar tal resposta. Outra é sentir, mas sentir depende do corpo, e, além disso, é possível sentir enquanto dorme. Resta o pensar, o qual é dito aquilo o qual não pode ser separado de mim, diz ele:
Eu sou, eu existo. Isso é certo, mas por quanto tempo? a saber por todo o tempo em que penso, pois poderia ocorrer que se eu deixasse de pensar, deixaria ao mesmo tempo de ser ou de existir. Nada admito que não seja necessariamente verdadeiro. Nada sou, pois falando precisamente, senão uma coisa que pensa. (DESCARTES, 1979, p.94)

            Assim, Descartes conquista sua primeira certeza na ordem das razões usando seu método: uma coisa que pensa é também uma coisa que duvida, pois o ato de pensar é o mesmo ato de duvidar. Dessa forma, o método excluiu tudo o que era duvidoso, mas encontrou na dúvida a certeza daquilo que era essencial para Descartes existir.
            Para ele, pensar se dá de diferentes modalidades que incluem duvidar (não acreditar estar convencido de algo), conceber (gerar, produzir conceitos), afirmar ou negar (formar juizos acerca de algo), querer ou não querer (decidir por isto ou aquilo), sentir (ver, ouvir, cheirar, tocar e "saborear") (o saborear se subdivide em salgado, doce, amargo, azedo e mais recentemente "umami"), Além do imaginar.
            No senso comum, imaginar está associado a fantasiar, mas para Descartes isso não se segue. O filósofo não vê a imaginação como uma atividade de criatividade exclusivamente, apesar, da criação imaginativa existir. Tal forma de percepção está restrita, no texto, às coisas materiais.
             Imaginar, para Descartes, pressupõe a existência de corpos, sendo sempre a imagem de coisas corporais, pois nossos sentidos percebem coisas corporais e não fantasias. Assim os sentidos e a imaginação são entrelaçados a coisas materiais. Além disso, a imaginação pode também estar associada a memória, pois ao lembrarmo-nos de algo, invocamos na mente imagens de coisas corporais. Reunimos, assim, os dados dos sentidos ao imaginar.
            Nesse sentido, a imaginação para Descartes é muito mais simples do que a noção difundida pelo senso comum. Todas essas modalidades ocorrem internamente e não externamente, sendo os modos de pensar atos sempre introspectivos.
            Dessa forma, apenas o pensar resiste a exclusão metódica. O que nos leva novamente a proposição quando o filósofo afirma " Eu sou, eu existo é necessariamente verdadeira sempre que eu a pronuncio ou a concebo em meu espírito. Assim, é da unidade entre pensar e existir que concebe-se a natureza daquilo que tenho certeza.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
DESCARTES, René. Meditações Metafísicas, in Os Pensadores, edição Abril, Rio de Janeiro, 1979.

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Resenha: “Convite à Filosofia”, de Marilena Chauí



Ensinar Filosofia já não é tarefa fácil, que dirá passar a matéria para jovens inseridos no Ensino Médio, marcados pelo encerramento de um longo ciclo e pelo início das primeiras decisões, que somadas às já constantes descobertas, medos e inseguranças próprias desta faixa etária, dão os elementos que demonstram o tamanho do desafio. As dificuldades enfrentadas pelos professores vão desde estabelecer um método na tentativa de tornar os conteúdos da disciplina ao menos digeríveis para estes alunos, à quebra dos arquétipos, formados ou adquiridos, em que a Filosofia é tida como qualquer coisa, menos como o que de fato ela é. Marilena Chauí (1941), professora titular de Filosofia Política e História da Filosofia Moderna na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e uma das mais prestigiadas intelectuais brasileiras, tratou de fazer um Convite à Filosofia para estes jovens em um livro que tem como finalidade fazer da ética, da política, da razão, do conhecimento, da verdade, da ciência, da técnica, da arte, da religião, da história, da lógica, da metafísica e dos demais temas da reflexão filosófica, matérias-primas no cultivo do interesse para a reflexão, desenvolvendo a autonomia intelectual e estimulando o raciocínio crítico, despertando o interesse pela Filosofia e o gosto pela interrogação partindo de investigações e problemas encontrados na experiência cotidiana do próprio leitor.
Chauí introduz o livro aproximando algumas situações representadas no filme estadunidense Matrix (Andrew e Lana Wachowiski, 1999) à Alegoria da Caverna de Platão (427 a.C - 347 a.C.) na tentativa de clarificar a distinção entre realidade e ilusão, conhecimento e crença, verdade e opinião. Trazendo o protagonista Neo como modelo comparativo à ideia de filósofo metaforizada no texto platônico, a professora trás ao cenário cotidiano questionamentos sobre a realidade essencial e profunda de uma coisa para além das aparências, o que permite ao leitor conceber tanto a noção de filosofia quanto o verdadeiro papel do filósofo.  A partir do primeiro esclarecimento, Chauí trata de instigar no leitor a procura pelo seu “filósofo interior”, tendo como ponto de partida as indagações sobre as nossas crenças costumeiras, ou seja, sobre as ideias em que acreditamos sem questionar, que aceitamos porque são evidentes, assim como as sombras na parede da Caverna e os elementos que compõem a Matrix. Didaticamente a autora vai explicando em que consiste o estudo da Filosofia: questões como a distinção entre a reflexão filosófica e a atitude filosófica, a atitude crítica, o pensamento sistemático da Filosofia, suas utilidades e definições, se desenvolvem de acordo com ou uma ordenação metódica e por meio de uma linguagem bastante acessível, contando ainda com exercícios ao fim de cada unidade para reforçar e fixar o conteúdo que foi pontificado.
Além do esquema cronológico adotado por Chauí - dividindo o livro em oito unidades e subdivididos em capítulos - a começar pela origem e nascimento da filosofia na Grécia antiga, e dos exercícios de fixação, as técnicas relativas à transmissão do conhecimento filosófico contam com o uso de figuras que ilustram o conteúdo textual, dando um suporte didático que permite a qualquer leitor alheio ao assunto, um ritmo que favorece uma maior absolvição do que está sendo passado. Contextualizando a filosofia na história da humanidade, e a autora perpassa pelos primórdios do pensamento filosófico: Do período pré-socrático ao socrático, filósofos como Tales, Anaxímenes, Anaximandro, Heráclito, Parmênides, Pitágoras, Empédocles, Anaxágoras e Zenão são apresentados. O período clássico e helenístico (do século VI a.C. ao século VI d.C.) é apresentado sistematicamente até chegarmos ao medievo (do século VIII ao século XIV). Resaltando a influência de Aristóteles e Platão sobre o pensamento dos filósofos medievais, Marilena passa por Plotino, Santo Agostinho, Santo Tomas de Aquino, Guilherme de Ockham, Abelardo, dentre outros que refletiram sobre algumas das principais questões da história da filosofia, até chegar ao período da Filosofia Renascença (do século XIV ao século XVI). Esse esquema continua na Unidade I do livro seguindo pela modernidade (do século XVII a meados do século XVIII), período Iluminista (meados do século XVIII ao começo do século XIX), até chegar à contemporaneidade. O leitor tem a oportunidade de se encontrar na história da filosofia em apenas trinta e três páginas, o que lhe concede a base necessária para prosseguir posteriormente com assuntos mais complexos.
A este ponto o leitor já tem todo um aparato introdutório, uma reunião dos instrumentos e/ou itens cuja função é fundamental à realização dos objetivos que formam o propósito geral do livro. Seguindo o procedimento encadeado em etapas ligadas entre si para tornar mais eficiente o processo de aprendizado, o conteúdo passa a ser exposto focado em suas especificidades: “A Razão” dá nome à Unidade II que busca estabelecer, a primeiro momento, a origem, o princípio e os vários sentidos da palavra razão. Cronologicamente o texto explicativo expõe os princípios racionais defendendo que o pensamento racional é aquele que possui lógica e se dá por intuição ou raciocínio, passando pelas noções de indução, dedução e abdução, para em seguida expor os conceitos de Inatismo e Empirismo até chegarmos à razão na Filosofia contemporânea. Esta mesma sequencia se matem no decorrer das unidades seguintes, obedecendo sempre a uma combinação de partes que, coordenadas, concorrem para um fim de valor pedagógico, a fim de indicar as proporções de suas partes, suas relações mútuas e o funcionamento do todo, conservando a ordem histórica ao partir sempre dos primórdios aos epílogos. Assim acontece na Unidade III com os esclarecimentos acerca das ideias de verdade, falsidade, incerteza, ignorância, dogmatismo, as diferentes concepções filosóficas sobre a natureza e a possibilidade do conhecimento verdadeiro como a socrática, a platônica, a aristotélica, a agostiniana, a cartesiana, a baconiana e kantiana, por exemplo; Na Unidade IV com a origem e nascimento da lógica com a dialética platônica e a formalização do pensamento lógico a parir de Aristóteles com os seus Silogismos, suas principais características, seus objetos, seus diferentes tipos como a lógica simbólica ou formal (dividida em lógica proposicional e lógica de predicados) e a lógica matemática (uma extensão da lógica simbólica em outras áreas), e aplicações nos ambitos da filosofia, da ciência e do conhecimento em geral; Na Unidade V com as questões relativas ao conhecimento como a percepção, a memória, a imaginação, a inteligência, a linguagem, o pensamento, a experiência, e as diversas problemáticas suscitadas no decorrer da história da epistemologia, desde o seu surgimento na modernidade até os dias atuais; Na Unidade VI com a origem, objetos de indagação, principais conceitos e as diferentes vertentes e tradições da metafísica até chegar àquilo que Chauí chama de “as mortes da metafísica” que ocasionam o surgimento da Filosofia pós-metafísica como a realidade puramente discursiva do sujeito do conhecimento;  Na Unidade VII com as discussões sobre a ciência ou atitude científica e as suas diferenças em relação às características do senso comum, diferenças entre ciências humanas e ciências da natureza, a passagem da ciência antiga para a ciência moderna, as mudanças e revoluções científicas e a perspectiva filosófica acerca do ideal científico; Na Unidade VIII com as reflexões sobre o mundo da prática, dos resultados e consequências expressas nas obras, feitos, ações, instituições, técnicas e ofícios do homem social, na cultura, na ética, na vida política, na consciência moral, no universo das artes e dos juízos estéticos, no exercício liberdade, em todas as subtemáticas provindas a partir de um processo de derivação destes objetos primários de reflexão como a cultura de massa ou  massificação cultural e a industria cultural, a experiência do sagrado ou a religiosidade como manifestação cultural, os fenômenos sociais da comunicação e da propaganda ou difusão e divulgação de ideias, valores, opiniões, informações para o maior número de pessoas no mais amplo território possível, a informática como revolução microeletrônica no modo de produção e transmissão de informações, os paradoxos da política no choques ideológicos, a criação do direito, a ideia de republica, soberania, tirania, monarquia, aristocracia, democracia, liberalismo, comunismo, socialismo, anarquismo, fascismo, nazismo, consciência de classes, a ideia de revolução, e as contribuições da Filosofia política no progresso da sociedade civil.  

Resenha: “O importuno”, de Carlos Drummond de Andrade.



“O Importuno”, ou seja,  aquele que se torna fastidioso com sua comparência, suas obsecrações, que enfada com seus atos reiterados ou despropósitos, nem sempre é o impertinente: Em uma das “70 historinhas” - uma compilação de contos de 1978 -, o poeta carioca Carlos Drummond de Andrade (1902 — 1987) trata de expor uma situação que trás em seu âmago o combustível para uma discussão digna de operosidade: se, por exemplo, há uma regra, ou um conjunto delas, alicerçando, exceptuando e admoestando as ações e/ou os modos de proceder de todos os integrantes de um determinado conjunto de pessoas, quando a maior parte desse grupo delibera (seja por que interesse for) infringir aquilo que foi determinado como princípio (seja de que maneira for) e, em contrapartida, um indivíduo opõe-se a eles na tentativa de “manter a ordem” fundada na expectativa de ser respeitada,  os importunos são os transgressores daquele sistema instituído, ou o indivíduo que transgride a transgressão coletiva?
Se a sociedade “é uma porção de pessoas juntas” e “só continua a funcionar porque muitas pessoas, isoladamente, querem e fazem certas coisas”, por que “ suas grandes transformações independem, claramente, das intenções de qualquer pessoa em particular”? A esta questão - derivada de um trecho do livro “A sociedade dos indivíduos”, escrito em 1987 pelo sociólogo alemão Norbert Elias (1897 — 1990) - cabe uma generosa atenção. É certo que a coletividade só é possível mediante a conjunção de individualidades. Por outro lado, um sujeito que se vale de seus próprios meios, insulado em sua autonomia, se se empenha em “fazer diferente” daquilo que está sendo feito, mesmo que esteja munido de boa fé, é mais exequível que seja fitado pelos demais como alguém que violou as normas sociais do que como um progressista, por assim dizer. Para o sociólogo norte-americano Howard Saul Becker (1928), esses indivíduos, os desviantes, são denominados “outsiders” - que em português pode ser transladado por algo semelhante a forasteiro, intruso ou estranho -, termo que dá nome ao seu livro “Outsiders – Estudos de sociologia do desvio”, escrito no ano de 1963. Becker vê o desvio como uma criação de grupos sociais e não como a qualidade de algum ato ou comportamento individual. Os desvios são, numa definição lacônica, a ação de ruptura que é rotulada como desviante por pessoas em posições de poder. No entanto, a depender da perspectiva dos agentes que compõem um determinado panorama, a condição de Outsider pode se deslocar de um agente para outro. O sociólogo emprega dois casos para ilustrar sua abordagem para a sociologia do desvio: a história das leis sobre o uso da cânhamo nos Estados Unidos e a vida dos músicos de Chicago (EUA). Em ambos os casos são demonstrados os conflitos viventes entre as regras como o reflexo de certas normas sociais mantidos pela maioria de uma sociedade e os caminhos alternativos seguidos pelos grupos sociais desviantes. Becker conclui “Outsiders” enfatizando a necessidade da pesquisa empírica para sua teoria. Neste ponto Peter Berger (1929) concordaria com ele: para o sociólogo austro-americano, o sociólogo, em posse de suas atribuições, “é uma pessoa que se ocupa de compreender a sociedade de uma maneira disciplinada. Essa atividade tem uma natureza científica. Isto significa: aquilo que o sociólogo descobre e afirma a respeito dos fenômenos sociais que estuda ocorre dentro de limites rigorosos.”, asseveração que pode ser encontrada no primeiro capítulo do seu livro intitulado “Perspectivas sociológicas: Uma visão humanística”.
Dito isso, quem dos personagens envolvidos no conto drummondiano pode ser considerado como um desviante beckeriano? Diríamos que ambos. Se o homem “indiferente, alienado, perguntando por um vago papel” dá vazão aos seus interesses particulares “em face dos interesses da pátria”, do ponto de vista dos que instituíram a conveniência de uma conduta em específico não haveria outra definição para o seu comportamento que não a de desviante social. Afinal de contas “A unidade pela diversidade” é, nesta e em outras circunstâncias em que esteja envolvido um grupo social, peculiaridade do que é relevante. Mas, depois de toda esta explanação, entendemos que se enxergarmos o ocorrido pela óptica daquele que foi ao recinto para ser atendido, perceberemos que os Outsiders na verdade são os fanáticos por futebol, contravertem a ordem regular para, excepcionalmente, satisfazerem seus interesses coletivos revestidos de individualidade.

Autor: Ailton Filho.

Resenha: A poesia em Aristóteles



A Poética é entendida por Aristóteles de duas maneiras diferentes. Por um lado, refere-se à arte como fabricação ou produção de instrumentos ou objetos para um propósito particular. Por outro, faz alusão às artes não utilitárias ou, simplesmente, belas artes. As últimas estão destinadas a produzir prazer ou agrado àquele que as experimenta em formato de música, poesia, dança, pintura ou escultura. A essência dessas artes é a imitação da realidade, o que gera prazer e admiração. É no segundo sentido que Aristóteles usa o termo poética em sua obra “Arte Poética”.  

Aristóteles argumenta que a poesia trágica, a comédia, a poesia ditirâmbica e aquelas que são acompanhados por flauta e cítara, têm em comum o fato de que ambas são imitações. No entanto, ele as diferem por três razões: em primeiro lugar, imitam por meios diversos; segundo, imitam objetos diversos; terceiro, imitam de maneiras diferentes. Os diferentes meios de comunicação utilizados para imitar são o ritmo, a palavra, ou linguagem, e a harmonia. Algumas artes se utilizam de todos esses meios, mas se diferenciam porque umas usam todos, outras alguns, outras o fazem simultaneamente e outras em diferentes momentos.   Em relação ao objeto imitado, os homens que o poeta imita podem ser melhores, piores ou iguais em sentido moral.

Segundo Aristóteles, a diferença entre a tragédia e a comédia é que a primeira representa melhor (bons e nobres) os homens que imita, enquanto a segunda os representa piores do que são. A terceira distinção que Aristóteles faz a respeito da forma de imitar, refere-se à diferença entre a poesia dramática e a épica. Na épica com os mesmos meios ou recursos para representar a mesma coisa, é possível falar dos fatos através de uma personagem (indiretamente) ou colocá-los na boca do autor (diretamente). Na dramática os imitados se apresentam como pessoas agindo por si mesmas, de modo que o autor está oculto.  

Para Aristóteles, a poesia surge a partir da existência de dois fatores ou causas naturais no homens: primeiro, a capacidade e tendência a imitar e apreciar as imitações; segundo, a capacidade de harmonia e ritmo. Os homens nobres e virtuosos imitam ações dessa mesma natureza. Enquanto os homens comuns fazem sátiras e paródias. Assim, os poetas nobres compõem tragédias e os mais vulgares comédias. A comédia procura imitar as traços mais ridículos e feios. A tragédia envolve todos os elementos da épica, mas a épica não envolve todos os da tragédia. A tragédia se diferencia do épico quanto à extensão, à sua natureza narrativa e ao tipo de metro que utiliza. Elas têm em comum o fato de que são imitações métricas de ações elevadas.

Em seguida, Aristóteles se concentra na tragédia e  a define como a imitação de uma ação elevada e perfeita, de uma extensão particular, através de uma linguagem ornamentada que tem ritmo, harmonia e canto em cada parte, por meio da ação, que conduz através da compaixão e do terror, à purificação dessas paixões. Segundo Aristóteles, os elementos essenciais ou qualitativos da tragédia são seis: a trama, os personagens, a linguagem, o pensamento, o espetáculo e o canto.  

Na continuação Aristóteles se dedica a tratar de cada um destes elementos. Quanto ao argumento, ele pode ser simples quando a ação é unitária, contínua e as mudanças ocorrem sem sem reconhecimento e sem peripécia. No entanto, a mudança no complexo ocorre pelo reconhecimento, por peripécia ou ambos. A peripécia é a transformação do ator em seu oposto, ou seja, quando uma ação lança o oposto do que você deseja alcançar. O reconhecimento refere-se à mudança que ocorre na passagem da ignorância ao conhecimento, que gera amor ou ódio nas pessoas. Isto pode ser de diferentes tipos. O primeiro tipo de reconhecimento é o menos artístico, que é o produto de uma marca. Isso pode ser natural ou adquiridos. A segunda forma de reconhecimento é o cenário para um poeta, que não é considerada artística. O terceiro tipo é produzido pela recordação ao ver alguma coisa, e o quarto provem de um silogismo.

A peripécia e o reconhecimento são os dois lados do argumento. Para Aristóteles, a mais bela trama de uma tragédia deve ser complexa, não é simples, representando acontecimentos terríveis e lamentáveis, características peculiares destas. As partes da tragédia podem ser divididas em prólogo, episódio, êxodo e coral. Estas peças são comuns à toda tragédia. No entanto, existem outras partes como a música cênica, por exemplo.  Os caracteres são o segundo elemento qualitativo da tragédia que apresenta Aristóteles. De acordo com ele, há quatro aspectos que devem ser levados em conta o respeito deles. É importante saber que com “caracteres” Aristóteles refere-se aos traços de personalidade ou de caráter das personagens. O primeiro é que sejam bons. O segundo é uma questão de adequação dos caracteres. Nesse sentido, não é apropriado para uma mulher ter um caráter viril e temível. O terceiro caractere é a semelhança e o quarto é a consistência.  

Toda tragédia tem meio e fim. Segundo Aristóteles, existem quatro tipos de tragédia: a complexa, a ntetética, a ética e a de entretenimento. Da mesma forma, você não pode construir uma tragédia com um sistema épico, isto é, uma pluralidade de relatos característicos da epopeia. No que diz respeito ao pensamento, Aristóteles não o põe em discussão, apenas se limitando a dizer que eles correspondem a todos os efeitos que pretendem atingir através de palavras ou de fala.

Em relação a linguagem, Aristóteles a dividiu em oito partes: elemento (letra), sílaba, conjunção, articulação, substantivo, verbo, caso e sentença. A virtude da linguagem é, para Aristóteles, ser claro sem ser trivial. A linguagem ou discurso não pode ser formado apenas por palavras simples, ou apenas com metáforas. Portanto, a tarefa do poeta é misturar ou combinar todos esses recursos linguísticos.    

Em relação à epopeia e à tragédia, estas têm em comum que os argumentos devem ser desenvolvidos de acordo com a exigência da tragédia, ou seja, de forma dramática. Estas dizem respeito a uma única ação perfeita e devem ter um começo, meio e fim. A  primeira se difere da segunda porque é clara e tem unidade de ação (narra uma só coisa, como a Guerra de Tróia, por exemplo). Enquanto isso, a tragédia pode contar uma multiplicidade de ações com um ou mais protagonistas.   

As partes da epopeia e da tragédia são as mesmas, exceto o espetáculo e o canto que correspondem ao último. Aristóteles enfatiza duas diferenças entre estes dois gêneros. O metro da epopeia é o hexâmetro, ou verso heroico, enquanto a tragédia utiliza nas partes recitadas os trímetros iâmbicos e tetratâmicos. Quanto à extensão, o limite da tragédia é marcado pelo período necessário para que se produza a peripécia. Para Aristóteles, a tragédia só se pode realizar uma ação de cada vez, sem espaço para cenas paralelas. A epopeia, ao contrário, suporta variações mais lexicais.  

Aristóteles concebe que, assim como o pintor, o poeta tem a tarefa de reproduzir imagens. Ao fazê-lo, o poeta imita a realidade de acordo com três modalidades. A primeira é a realista, segundo a qual o poeta apresenta as coisas como elas são no presente ou como eram no passado. A operativa e fantástica é quando o poeta representa coisas como o indivíduo ou a sociedade acha que eles são. O terceiro modo é o idealista, aqui o autor o apresenta como ele deveria ser.

Mais tarde, Aristóteles distingue excelência ética (sócio-político) de uma excelência literária e poética. Isto significa que uma obra literária do ponto de vista sócio-político pode ser amplamente aceita, no entanto, sem ser considerada como boa literatura e poesia, e vice-versa. O poeta pode cair em dois erros. Um de natureza substancial, quando não é possível imitar o que pretende imitar. O outro de caráter acidental, que se refere à falta de uma ciência ou arte determinada.   

Para alguns filósofos antigos, incluindo Platão, a tragédia era menos respeitável, uma vez que foi dirigida a um público inculto e vulgar. Em vez disso, a epopeia foi destinado a pessoas educadas, portanto, não precisa de recursos visuais, eram capazes de pensar, imaginar e abstrair. Aristóteles passa a apontar que a tragédia tem dois elementos que não se fazem presentes na epopeia: o espetáculo e o canto). Além disso, a unidade da epopeia é menos robusta do que a da tragédia. A tragédia é mais intensa conforme expressa diretamente e em primeira pessoa.

O Cinema e a Tragédia

Se pensarmos na tragédia como sendo “[...] a imitação de uma ação importante e completa, de certa extensão; num estilo tornado agradável pelo emprego separado de cada uma de suas formas, segundo as partes; ação apresentada, não com a ajuda de uma narrativa, mas por atores, e que, suscitando compaixão e terror, tem por efeito obter a purgação dessas emoções.” - como consta na tradução feita por Pietro Nassetti -, talvez seja possível estendermos a concepção aristotélica à contemporaneidade.

É certo que dentre os meios com os quais a tragédia é produzida, no século IV a.C Aristóteles não relaciona a arte cinematográfica. Desse modo, como o cinema seria tratado por Aristóteles? É a pergunta que faz o filósofo brasileiro Gonçalo Armijos Palácios faz no texto “Digressões sobre Aristóteles, arte e poesia”. Provavelmente a resposta a esta questão pode ser obtida no modo como filósofo grego trata da arte teatral em sua Arte Poética. Dito de outra maneira, deve haver filmes que refletem características arquetípicas da tragédia clássica. A forma de classificação do cinema, no entanto, sustenta Palácios, não deve se dá tal como acontece com o teatro, uma vez que se realizam por meios distintos, no entanto,tanto as comédias como as tragédias, ou os dramas em geral, podem ser levados a um cenário próprio e apresentados de formas diversas. Assim, se aplicamos o que diz Aristóteles sobre a comédia e a tragédia ao cinema, tanto filmes cômicos como os dramas se encaixariam na concepção do discípulo de Platão.” (PALÁCIOS, 2011).

Nesse sentido, a fábula medieval “A Filha de Töre em Vangél”, de 1673, pode ser considerada uma oba de arte. Da mesma forma, o filme “A Fonte da Donzela”, de 1959, baseado nesta fábula, segue o modelo relativamente preciso de como uma história dramática deve ser.

A Fonte da Donzela

Dirigido pelo sueco Ingmar Bergman (1918 - 2007) e roteirizado pela também sueca Ulla Isaksson (1916 - 2000), “A Fonte da Donzela” (Jungfrukällan) conta a história de uma típica família sueca do século XIV. A família vive em uma fazenda grande ao leste das montanhas, protegidos do frio e com um certo conforto. Herr Töre (Max von Sydow), o chefe da casa, e Märeta Töre (Birgitta Valberg), sua mulher, cuidam de Ingeri (Gunnel Lindblom) como se fosse uma filha, mas os cuidados são absolutamente inferiores aos da mimada e única filha Karin Töre (Birgitta Pettersson).

Uma característica marcante dos personagens é a religiosidade. Orações constantes, sacrifícios, costumes e valores demonstram um cristianismo fervoroso. Uma que parece não compartilhar da mesma religião é Ingeri, uma personagem curiosa, aparentemente revoltada, exala ódio do olhar aos gestos, clama por um Deus de nome Odin. Ela demonstra uma relação perturbada com Karin, com elementos que vão da cumplicidade à inveja. Enquanto Karin recebe um tratamento equivalente ao de uma princesa, cabe à Ingere o comprometimento com as tarefas domésticas a ela imputadas.

Com a benção do casal Töre, as duas iniciam uma viagem à igreja do outro lado da floresta para levar as velas da Virgem Maria que serão acesas na missa matutina em celebração à Sexta-Feira da Paixão. Montadas em seus cavalos, seguem o percurso. Num dado momento da jornada, Ingeri resolve subitamente desistir da viagem, alegando medo de prosseguir pela floresta escura. Antes disso, ela já havia comentado com Karin sobre os perigos que aquele lugar oferece. Karin, então, segue viagem sozinha. Ao ser auxiliada por um feiticeiro que reside em uma cabana no meio da floresta, Ingeri trás à tona o motivo de seu desespero: supostamente ela havia encomendado trabalhos a serem oferecidos à Odin por este homem, com o intuito de que algo de ruim acontecesse à Karin.

Em um ponto do trajeto, Karin esbarra com três irmãos que vivem na floresta pastoreando algumas cabras. Ela resolve então parar um pouco para oferecer-lhes algo para comer. Observando cada movimento de Karin estava Ingeri, escondida para que não fosse percebida. Os dois irmãos mais velhos deixam transparecer que tinham algo a mais além da fome, mas ingenuamente Karin serve-lhes pão, carne e queijo.  Eles comem, bebem, riem. No entanto, o que se viu a partir daí foi uma tragédia pousar sobre a menina Karin: os dois irmãos mais velhos estupram-na, roubam-na e matam-na logo depois. O irmão mais novo assiste às cenas de violência revestido de perplexidade, e Ingeri sem esbanjar uma reação que impedisse aquilo de acontecer, vendo ali o seu pedido feito à Odin se realizar.

Os homens fogem para longe, encontrando refúgio em uma casa grande. O que eles não sabiam é que trata-se justamente da casa da família Töre. São recepcionados por Herr, que não desconfia de nada. Convidados a juntarem-se à mesa e passarem a noite ali mesmo na sala de refeições. Em dado momento, um dos irmãos oferece à mãe de Karin vestes que diz ser de uma irmã recentemente falecida. No entanto, trata-se do vestido que Karin usara para viajar. Märeta se dá conta, com isso, de que algo de ruim havia acontecido à sua filha e que esses homens têm ligação direta com isso. Diz para eles que falará com o marido sobre a possível compra, não deixando transparecer o que sentira ao ver as roupas de sua filha ali. Comunicado sobre o ocorrido, o pai da menina providencia sua vingança. Prepara seu punhado e espera que os três despertem do sono. Após acordarem, entram em luta corporal com o pai, que acaba por matar os três, inclusive a criança.

Pai, mãe e demais familiares resolvem então buscar o corpo de Karin com a ajuda de Ingeri. Ao chegarem ao local do crime, se deparam com o corpo jogado sem vida ao chão, gerando uma comoção geral. O pai desabafa toda sua revolta aos céus, questionando a razão de tamanha tragédia. O filme é finalizado com a cena em que uma fonte de água surge abaixo do corpo de Karin, erguido antes disso por Märeta.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

A FONTE DA DONZELA. Jungfrukällan. Ingmar Bergman. Svensk Filmindustri. Suécia: 1959. EUA: Janus Films, 1982. DVD. 86 min, p&b.

ARISTÓTELES. Arte poética. São Paulo: Ed. Martin Claret, 2003.

PALÁCIOS, Gonçalo. Digressões sobre Aristóteles, arte e poesia. Jornal Opção, Goiânia, 27 fev. 2011. Nº 1860. Autor: Ailton Filho

Resenha: Platão e a poesia.


O último livro de A República começa com Sócrates retornando a um tema anterior, o da poesia imitativa. Ele reitera que, embora ainda contente por ter banido a poesia de seu Estado, pretende explicar as suas razões mais profundamente. Tomando uma cama como seu exemplo, Sócrates relata como no mundo existem três níveis em que ocorrem fenômenos: o primeiro e original é o nível de Deus, que cria a cama como uma ideia; o segundo é o carpinteiro que imita a ideia de Deus ao construir uma cama particular; o terceiro e último é o poeta ou, no caso, o pintor, que imita o imitador do Primeiro; ou seja, segundo Sócrates, uma cama feita por um pintor está três graus afastada da natureza, portanto, assim como o pintor, o poeta imita a realidade de uma forma muito distante de sua verdadeira natureza: "Desse modo, o autor de tragédias, se é um imitador, estará por natureza afastado três graus do rei e da verdade, assim como todos os outros imitadores." (PLATÃO, 2007)
O texto está configurado para iniciar um antagonismo entre o discurso poético em geral e o filosófico; e, então, gradualmente movê-lo e endurecê-lo para mostrar o verdadeiro e irredutível conflito entre a filosofia e a poesia trágica.
Homero é oferecido como um infortúnio. O grande poeta que Sócrates lamenta teria ajudado o seu país mais eficientemente se ele tivesse tido um papel político, uma vez que um artista como ele imita aquilo que não entende; o poeta canta sobre o sapateiro, mas ele sabe o comércio de sapatos? De modo nenhum. Imitação, diz Sócrates, é um jogo ou esporte; é brincadeira. Sendo o poeta um imitador da imitação, Sócrates defende: "os poetas fingem saber todos os tipos de coisas, mas realmente sabem nada". Considera-se amplamente que eles têm conhecimento de tudo o que escrevem sobre, mas, na verdade, eles não o fazem.
"Sendo assim não peçamos contas a Homero nem a nenhum outro poeta sobre vários assuntos. Não lhes perguntemos se um deles foi médico, e não apenas imitador da linguagem destes, que curas se atribuem a um poeta qualquer, antigo ou moderno, como a Esculápio, ou que discípulos eruditos em medicina deixou atrás de si, como Esculápio deixou os seus descendentes. De igual modo, no que concerne às outras artes, não os interroguemos, vamos deixá-los em paz." (PLATÃO, 2007).
Neste cenário, a poesia pode ser definida como um gênero literário que produz um discurso estético. Filosofia, por sua vez, pode ser definida como o amor pelo conhecimento e pela sabedoria, e produz um discurso racional. Podemos observar que a diferente natureza de seus discursos parece imensurável. No entanto, percebe-se que ambas produzem um discurso, e, por isso, aqui temos de nos perguntar se esses dois discursos têm o mesmo objeto. A noção de alteridade sustentada pela questão destaca sua diferença e distinção: são estas as marcas de uma oposição, ou que significa que eles se complementam em um objeto comum?
A mímese poética e o banimento da poesia
Estamos entrando em nosso primeiro momento de reflexão, onde poderemos ver que a poesia é o tema da severa condenação pela filosofia. Como vimos a princípio, a poesia tem sua razão de existir fora da filosofia, e, por isso, há um desacordo entre ambas. Devemos perguntar-nos o que é essa discordância. No livro Livro III de A República, Platão denuncia que a poesia não tem nenhuma preocupação com a verdade. A filosofia centra-se em "o que é", ou seja, é a verdade, já a poesia incide sobre "o que parece", isto é, aplica-se apenas à aparência das coisas. Por um lado, o poeta não exerce uma narrativa simples (diegese), exerce uma imitação (mimesis). Isso significa que ele tende a confundir e enganar o seu público-alvo. Além disso, uma vez que a obra do poeta é um mimesis, uma imitação, Platão define-o como "um criador fantasma". Por estas razões, a filosofia é, para Platão, soberana à poesia, e, por isso, as obras dos poetas deve ser controladas sob a autoridade dos fundadores da cidade.
"Precisamos, assim, ver se essas pessoas, tendo deparado com imitadores desta natureza, não foram enganadas pela contemplação das suas obras, não notando que estão afastadas no terceiro grau do real e que, mesmo desconhecendo a verdade, é fácil executá-las, porque os poetas criam fantasmas, e não seres reais, ou se a sua afirmação tem algum sentido e se os bons poetas sabem realmente aquilo de que, no entender da multidão, falam tão bem." (PLATÃO, 2007).
É certo que Platão não só expulsa conteúdos e autores específicos, mas as próprias formas poéticas. Em particular, a forma mimética. A análise mostra que a principal razão para isso está no fato de que valores como logo, independentemente de seu conteúdo, tem um caráter que não pode ser visto do ponto de vista moral, mas puramente estético, o que o opõem ao aparato ideológico no qual a pólis ideal se baseia. Daí a importância da análise de Platão, que não está tanto na avaliação da atividade poética, mas no desvendar estético da obra poética e seus efeitos sobre um programa político exposto cautelosamente ao longo de A República.
A parte racional da alma é calma, estável, e não é fácil de imitar ou compreender. Poetas imitam os piores partes, as inclinações que fazem personagens facilmente excitáveis e coloridos. Poesia atrai naturalmente para as piores partes da alma; desperta, nutre e fortalece estes elementos de base, enquanto há um desvio de energia a partir da parte racional.
Pela razão estabelecida no Livro X, que a poesia alimenta a busca do prazer e obscurece a parte do pensamento, do raciocínio da psique, ou seja, que é imitação do mundo sensível, provocando em nós conflitantes e opostas percepções, ao invés de orientar-nos pelo mundo inteligível de uma razão governado pela lei da (não-)contradição, a poesia corrompe até mesmo as melhores almas. Ela nos engana em simpatizar com aqueles que choram excessivamente, que cobiçam de forma inadequada, que riem de coisas vis. Ela ainda nos incita a sentir essas emoções básicas vicariamente. Achamos que não há vergonha em ceder essas emoções porque estamos entregando-as com respeito a um personagem de ficção e não com relação às nossas próprias vidas. Mas o prazer que sentimos em ceder a essas emoções em outras vidas é transferido para a nossa própria vida. Uma vez que essas partes de nós mesmos foram nutridos e reforçados, desta forma, eles florescem em nós quando estamos a lidar com nossas próprias vidas. De repente, nós nos tornamos os tipos grotescos de pessoas que vimos no palco ou ouvimos falar na poesia épica. Para Sócrates, inclusive, os poetas trágicos são os principais agressores quando se trata de nutrir essa parte da psique que atrai as emoções conflituosas e o engajamento apaixonado.
Apesar dos perigos claros de poesia, Sócrates lamenta ter que banir os poetas. Ele sente o sacrifício da estética agudamente, e diz que ele seria feliz para permitir-los de volta para a cidade se alguém poderia apresentar um argumento em sua defesa.
Filosofia e poesia em seus devidos lugares
No Livro X, Platão finalmente reafirma a educação baseada na filosofia em confronto com a educação baseada na poesia tradicional de motivações, por Platão anteriormente demitidas. Como vimos, Platão justificou a importância da filosofia e do filósofo, relevou a necessidade de definir o papel da filosofia dentro de orientações morais e construções éticas, e agora ele os exibe em relação aos seus rivais, os poetas, concluindo uma argumentação que reconduz esse papel para filosofia, uma vez que mostra, através de Sócrates, que a arte e a poesia se mostram afastadas da realidade:
"Era a esta conclusão que queria conduzir-vos quando dizia que a pintura, e costumeiramente toda espécie de imitação, realiza a sua obra longe da verdade, que se relaciona com um elemento de nós mesmos que se encontra afastado da sabedoria e não se propõe, com essa ligação e amizade, nada de saudável nem de real." (PLATÃO, 2007).
Os pronunciamentos sobre as artes se envolveram em um debate acadêmico que sobrevive até os dias atuais. Muitas sociedades têm de vez em quando adotado as idéias de Platão, a fim de defender a censura prática de certas manifestações artísticas, alegando que elas manifestam temas que são moralmente corruptores, que "enviam a mensagem errada" aos cidadãos cujo poder de raciocínio é fraco, na melhor das hipóteses, ou são facilmente manipuláveis. Um ponto de vista totalmente oposto pode ser adotado se pensarmos na arte como sendo essencialmente apolítica e amoral, e que, por isso, não deve ser colocada sob a alçada de qualquer censura; todavia é difícil de imaginar manifestações artísticas que não tenham sido influenciadas por questões morais ou políticas, seja no entorno de sua própria identidade estética, seja no sentido que carrega, ou até na expressividade, fruto da experiência do artista.


REFERÂNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret, 2007
VILLELA-PETIT, Maria da Penha. Platão e a poesia na República. KRITERION, Belo Horizonte, nº 107, Jun/2003, p. 51-71. Autor: Ailton Filho