sábado, 17 de março de 2018

Descartes e o Cogito ergo sum


            Descartes começa o primeiro capitulo e parte das Meditações Metafísicas "Das coisas que se podem colocar em dúvida", afirmando que por muito tempo se enganara e questionando seus próprios meios de obtenção do conhecimento seguro. Para isso, diz que até então seus princípios foram mal assegurados, fato que lhe rendera apenas dúvidas e incerteza.
            Desse modo, a filósofo busca constância e firmeza, não apenas para satisfação e segurança individual (pois a dúvida tinha em vista apenas refletir sobre ele próprio), mas também porque ambiciona alicerçar todas as ciências sobre bases sólidas e seguras, em vista de provar a veracidade daquilo que não pretende mais chamar de simples opiniões. Ele se desfaz, para isso, de suas falsas e incertas opiniões formadas ao longo dos anos, para começar tudo desde os fundamentos.
            Descartes relata que esperou muito tempo para cumprir tal tarefa, já que não encontrava-se maduro e preparado o suficiente para fazê-lo. Por outro lado, agora mostra-se disposto a despojar-se das suas antigas opiniões. Toma, então, a decisão de sistematizar suas dúvidas acerca do que é manifestamente incerto ou duvidoso.
            A dúvida hiperbólica é assim engendrada numa decisão. Nesse sentido, no primeiro momento do texto a) ele reconhece que possui falsas opiniões b) se desfaz dessas opiniões c) começa tudo de novo desde os fundamentos.
            Descartes trata como falso aquilo que é duvidoso e incerto, pois, segundo ele: o que nos enganou uma vez, não merece crédito. Dessa maneira, pretende estabelecer uma relação entre o que é falso, incerto e duvidoso, duvidando de tudo o que é possível duvidar afim de solidificar os alicerces das suas opiniões, e crenças, convertendo-as em certezas.

            A dúvida radical visa que seus resultados sejam verdadeiros. Por isso, é importante não pensar que as dúvidas são fingidas, pois elas estão comprometidas seriamente em extrair os frutos que restarem (verdades) do processo de exclusão.
            O primeiro grau da dúvida hiperbólica é o argumento dos sentidos. Descartes fala nele que experimentou que muitas vezes os sentidos lhe enganaram e que pensava ser prudente nunca confiar em um dia o enganou.
            Para ilustrar como os sentidos podem nos enganar algumas vezes, experimentemos, por exemplo, a visão de uma pessoa localizada em nossa frente, vemos sua face, seu tórax e abdômen vestidos ou desnudos, mas não conseguimos observar seu corpo verdadeiro em todos os seus ângulos, ou seja, sua totalidade, isto é, a visão se limita apenas a uma parte dessa totalidade, nos enganando.
            Outro exemplo, que se refere ao sentido da audição pode ser elucidado pela seguinte situação: ao ouvirmos uma pessoa chorar, podemos pensar que as lágrimas são de tristeza, quando na verdade são de alegria.
            Outro exemplo, que ilustra outro sentido: o do cheirar; pede um pouco mais de esforço, mas pensemos nos fumantes que quando perguntados porquê fumam, respondem que o fazem porque gostam do cheiro de sua fumaça quando na verdade são viciados em nicotina (substância  presente no cigarro). Esse exemplo pode repetir-se no rapé, que também contém nicotina, ou na cocaína, entre outras.
            Para ilustrar que o sentido do tato também pode nos enganar, pensemos apenas sentir que alguém nos toca na extremidade enquanto estamos de costas e nesse momento achamos que é nosso irmão João mas quando nos viramos constatamos que se trata do nosso amigo José.
            Finalmente, resta-nos o sentido do saborear, e nesse sentido, pensemos que ao comermos um bolo, pensemos que ele contém leite de vaca, açúcar refinado, chocolate e farinha de trigo com ovos. Mas quando perguntamos a cozinheira qual a receita, ela nos diz que leva leite vegetal, adoçante natural, cacau puro farinha de aveia, tofu, óleo e água. Ou seja, o paladar também pode nos enganar.
            O segundo argumento apresentado por Descartes em Meditações Metafísicas é o dos sonhos. Para esse argumento, o sonho e a vigília não são claramente distintos, pois quando dormimos temos costume de representar as coisas da mesma forma que representamos quando acordados.
            Isso leva Descartes a se perguntar se não está dormindo quando está acordado. A realidade se mostra em ambas as maneiras de ser e embora nos enganemos ao sonhar, nós também o fazemos acordados.
            Por conta dessa evidência, Descartes levanta a hipótese de que não há dicotomia de validade ou falsidade entre o sonho e a vigília. Nesse sentido, Descartes relaciona ambas as realidades dizendo que as coisas que fazemos e nos são mostradas nos sonhos parecem reais, mas, como se sabe, não passam de ilusões.
            Além disso, Descartes unifica a realidade nos sonhos à realidade presente em criações artísticas, pois ambas encontram referencias no que se entende por mundo real (em vigília): como, por exemplo, o azul pictórico é sempre o mesmo azul de quando estamos acordados.
            Dessa forma, Descartes encontra correspondências entre o mundo real e o mundo dos sonhos: é possível encontrar objetos simples e universais sendo representados nos sonhos, são eles: a) quantidade ou grandeza e seu número, b) espaço, c) tempo.
            Esses princípios são percebidos em ambas as realidades (sonho e vigília). Tanto no sonhos como na vigília dois mais três são cinco e uma esfera é sempre esférica, assim como um quadrado tem sempre quatro lados, e um triângulo, três. Contudo, o filósofo afirma que essa é a razão pela qual ciências que tratam de coisas compostas (Física, Medicina, Astronomia) não oferecem tanta certeza como as ciências que tratam de coisas simples (Aritmética e Geometria).
             Nesse sentido, o conhecimento geométrico e aritmético encontrados nos sonhos são a prova de que eles não são totalmente ilusões, pelo menos não tanto quanto a realidade em vigília a ponto de separar-se completamente dela.
            Para Descartes, Deus pode ser enganador no sentido de permitir o engano no mundo, porém ele enfatiza sua bondade soberana. Não é porque permite o engano que Deus seja mal, pois ele pode ser enganador por não querer que nos decepcionemos com as desilusões causadas pela constatação das verdades que ainda não possuímos. Dessa maneira, faz parte da sua bondade permitir o engano.
            Assim, Descartes converte o termo do "Deus enganador" em "Gênio maligno". Segundo o filósofo francês, esse gênio o faz acreditar em seus sentidos, que são ilusórios. Dessa forma, ele suspenderá seu juízo quanto a crenças relacionadas aos sentidos afim de cuidar para que nenhuma crença falsa lhe seja imposta pela industria do gênio maligno.
            Descartes encerra o capitulo descrevendo um tipo de preguiça que o assola e que lhe tira a coragem para seguir com o laborioso esforço de buscar a luz e o conhecimento da verdade.
            Na segunda parte das meditações, Descartes descreve seu sentimento que o enche de dúvidas. E, embora esteja se sentindo assim, continuará como antes: se afastará das coisas e opiniões duvidosas como se fossem falsas e seguirá assim até conseguir alguma certeza. Não importado se a primeira certeza seja a mais importante ou "mais alta certeza", mas tão somente que seja a inauguradora das certezas.
            Dessa forma, recomeça sua reflexão supondo que tudo o que vê é falso: pensa não apenas que não possui corpo e sentidos mas desacredita a realidade aparente de tal forma que supõe que tudo o mais são ficções do seu espírito (mente), restando unicamente a incerteza do mundo.
            Apesar disso, não vê necessidade em recorrer à divindade para encontrar as causas da sua dúvida, já que ele próprio se vê capaz de produzi-las. Isso o leva a questionar se ele não é alguma coisa, pois era capaz de algo e assim seria algo.
            Mais: será que sua existência dependia dos sentidos e do corpo? Essa possibilidade não contradiria a afirmação diante da qual  não há nada no mundo de certo, incluindo ele mesmo? certamente não. Segundo o relato do seu próprio pensamento, sua existência é indubitável.
            Levando em consideração a sua epifania anterior de que existe um gênio maligno que o engana sistematicamente, Descartes afirma que há algo de que não pode se enganar: de que ele é algo enquanto pensa ser esse algo. Assim, Descartes afirma que é algo e que existe. Ele diz que isso é verdadeiro todas vezes que é concebido ou enunciado em seu espírito, alma, mente.
            Essa frase representa, neste momento de sua obra, um transição que irá analisar a natureza do eu-existente-cartesiano. Assim, ele se volta para sua auto-suficiência capaz de encontrar verdades. O que, alias,  reflete o título dessa parte das meditações (Meditações Parte II) que é: "Da natureza do espírito e de como ele é mais fácil de conhecer do que o corpo".
            Descartes sabe que é, mas não sabe o quê é. Qual o conteúdo da existência que afirma ser verdadeira? é partindo desse ponto que Descartes sugere sua investigação metódica a fim de definir-se verdadeiramente. Para isso, se despoja, como antes, de todas  as suas opiniões e verdades infundadas.
            Agora, Descartes busca o que é indubitável em ser um homem: aquilo que é o homem, o que é o define verdadeiramente. Será sua racionalidade? O filósofo discorda desse método de investigação e realinha-se com o método de dúvida, no qual acredita que será mais bem sucedido.
            Dessa forma, primeiramente, ele considera apenas a si mesmo, a saber: que ele é um corpo. Para ele, isso o leva as relações entre sua alma e corpo. Mas o que é uma alma ?- Pergunta. Será como o vento?. O corpo, nos diz ele, não pode ocupar dois lugares ao mesmo tempo e é identificado como uma figura. Ele pode ser tocado pelo tato, visto pela visão, cheirado pelo olfato, etc. Além disso, pode ser afetado e movido.
            Na procura por sua essência, ou daquilo que o defina segundo as coisas as quais ele não pode duvidar, quais são os atributos que lhes pertence? caminha e alimentar-se, mas visto que não possui corpo algum, não podemos aceitar tal resposta. Outra é sentir, mas sentir depende do corpo, e, além disso, é possível sentir enquanto dorme. Resta o pensar, o qual é dito aquilo o qual não pode ser separado de mim, diz ele:
Eu sou, eu existo. Isso é certo, mas por quanto tempo? a saber por todo o tempo em que penso, pois poderia ocorrer que se eu deixasse de pensar, deixaria ao mesmo tempo de ser ou de existir. Nada admito que não seja necessariamente verdadeiro. Nada sou, pois falando precisamente, senão uma coisa que pensa. (DESCARTES, 1979, p.94)

            Assim, Descartes conquista sua primeira certeza na ordem das razões usando seu método: uma coisa que pensa é também uma coisa que duvida, pois o ato de pensar é o mesmo ato de duvidar. Dessa forma, o método excluiu tudo o que era duvidoso, mas encontrou na dúvida a certeza daquilo que era essencial para Descartes existir.
            Para ele, pensar se dá de diferentes modalidades que incluem duvidar (não acreditar estar convencido de algo), conceber (gerar, produzir conceitos), afirmar ou negar (formar juizos acerca de algo), querer ou não querer (decidir por isto ou aquilo), sentir (ver, ouvir, cheirar, tocar e "saborear") (o saborear se subdivide em salgado, doce, amargo, azedo e mais recentemente "umami"), Além do imaginar.
            No senso comum, imaginar está associado a fantasiar, mas para Descartes isso não se segue. O filósofo não vê a imaginação como uma atividade de criatividade exclusivamente, apesar, da criação imaginativa existir. Tal forma de percepção está restrita, no texto, às coisas materiais.
             Imaginar, para Descartes, pressupõe a existência de corpos, sendo sempre a imagem de coisas corporais, pois nossos sentidos percebem coisas corporais e não fantasias. Assim os sentidos e a imaginação são entrelaçados a coisas materiais. Além disso, a imaginação pode também estar associada a memória, pois ao lembrarmo-nos de algo, invocamos na mente imagens de coisas corporais. Reunimos, assim, os dados dos sentidos ao imaginar.
            Nesse sentido, a imaginação para Descartes é muito mais simples do que a noção difundida pelo senso comum. Todas essas modalidades ocorrem internamente e não externamente, sendo os modos de pensar atos sempre introspectivos.
            Dessa forma, apenas o pensar resiste a exclusão metódica. O que nos leva novamente a proposição quando o filósofo afirma " Eu sou, eu existo é necessariamente verdadeira sempre que eu a pronuncio ou a concebo em meu espírito. Assim, é da unidade entre pensar e existir que concebe-se a natureza daquilo que tenho certeza.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
DESCARTES, René. Meditações Metafísicas, in Os Pensadores, edição Abril, Rio de Janeiro, 1979.

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