Descartes
começa o primeiro capitulo e parte das Meditações Metafísicas "Das coisas
que se podem colocar em dúvida", afirmando que por muito tempo se enganara
e questionando seus próprios meios de obtenção do conhecimento seguro. Para isso,
diz que até então seus princípios foram mal assegurados, fato que lhe rendera
apenas dúvidas e incerteza.
Desse modo, a filósofo busca
constância e firmeza, não apenas para satisfação e segurança individual (pois a
dúvida tinha em vista apenas refletir sobre ele próprio), mas também porque
ambiciona alicerçar todas as ciências sobre bases sólidas e seguras, em vista
de provar a veracidade daquilo que não pretende mais chamar de simples opiniões.
Ele se desfaz, para isso, de suas falsas e incertas opiniões formadas ao longo
dos anos, para começar tudo desde os fundamentos.
Descartes relata que esperou muito
tempo para cumprir tal tarefa, já que não encontrava-se maduro e preparado o
suficiente para fazê-lo. Por outro lado, agora mostra-se disposto a despojar-se
das suas antigas opiniões. Toma, então, a decisão de sistematizar suas dúvidas acerca
do que é manifestamente incerto ou duvidoso.
A dúvida hiperbólica é assim
engendrada numa decisão. Nesse sentido, no primeiro momento do texto a) ele
reconhece que possui falsas opiniões b) se desfaz dessas opiniões c) começa
tudo de novo desde os fundamentos.
Descartes trata como falso aquilo
que é duvidoso e incerto, pois, segundo ele: o que nos enganou uma vez, não
merece crédito. Dessa maneira, pretende estabelecer uma relação entre o que é
falso, incerto e duvidoso, duvidando de tudo o que é possível duvidar afim de
solidificar os alicerces das suas opiniões, e crenças, convertendo-as em
certezas.
A dúvida radical visa que seus
resultados sejam verdadeiros. Por isso, é importante não pensar que as dúvidas
são fingidas, pois elas estão comprometidas seriamente em extrair os frutos que
restarem (verdades) do processo de exclusão.
O primeiro grau da dúvida
hiperbólica é o argumento dos sentidos. Descartes fala nele que experimentou
que muitas vezes os sentidos lhe enganaram e que pensava ser prudente nunca
confiar em um dia o enganou.
Para ilustrar como os sentidos podem
nos enganar algumas vezes, experimentemos, por exemplo, a visão de uma pessoa
localizada em nossa frente, vemos sua face, seu tórax e abdômen vestidos ou
desnudos, mas não conseguimos observar seu corpo verdadeiro em todos os seus
ângulos, ou seja, sua totalidade, isto é, a visão se limita apenas a uma parte
dessa totalidade, nos enganando.
Outro exemplo, que se refere ao
sentido da audição pode ser elucidado pela seguinte situação: ao ouvirmos uma
pessoa chorar, podemos pensar que as lágrimas são de tristeza, quando na
verdade são de alegria.
Outro exemplo, que ilustra outro
sentido: o do cheirar; pede um pouco mais de esforço, mas pensemos nos fumantes
que quando perguntados porquê fumam, respondem que o fazem porque gostam do
cheiro de sua fumaça quando na verdade são viciados em nicotina (substância presente no cigarro). Esse exemplo pode
repetir-se no rapé, que também contém nicotina, ou na cocaína, entre outras.
Para ilustrar que o sentido do tato
também pode nos enganar, pensemos apenas sentir que alguém nos toca na
extremidade enquanto estamos de costas e nesse momento achamos que é nosso
irmão João mas quando nos viramos constatamos que se trata do nosso amigo José.
Finalmente, resta-nos o sentido do
saborear, e nesse sentido, pensemos que ao comermos um bolo, pensemos que ele
contém leite de vaca, açúcar refinado, chocolate e farinha de trigo com ovos.
Mas quando perguntamos a cozinheira qual a receita, ela nos diz que leva leite
vegetal, adoçante natural, cacau puro farinha de aveia, tofu, óleo e água. Ou
seja, o paladar também pode nos enganar.
O segundo argumento apresentado por
Descartes em Meditações Metafísicas é o dos sonhos. Para esse argumento, o
sonho e a vigília não são claramente distintos, pois quando dormimos temos
costume de representar as coisas da mesma forma que representamos quando
acordados.
Isso leva Descartes a se perguntar
se não está dormindo quando está acordado. A realidade se mostra em ambas as maneiras
de ser e embora nos enganemos ao sonhar, nós também o fazemos acordados.
Por conta dessa evidência, Descartes
levanta a hipótese de que não há dicotomia de validade ou falsidade entre o
sonho e a vigília. Nesse sentido, Descartes relaciona ambas as realidades
dizendo que as coisas que fazemos e nos são mostradas nos sonhos parecem reais,
mas, como se sabe, não passam de ilusões.
Além disso, Descartes unifica a
realidade nos sonhos à realidade presente em criações artísticas, pois ambas
encontram referencias no que se entende por mundo real (em vigília): como, por
exemplo, o azul pictórico é sempre o mesmo azul de quando estamos acordados.
Dessa forma, Descartes encontra
correspondências entre o mundo real e o mundo dos sonhos: é possível encontrar
objetos simples e universais sendo representados nos sonhos, são eles: a)
quantidade ou grandeza e seu número, b) espaço, c) tempo.
Esses princípios são percebidos em ambas
as realidades (sonho e vigília). Tanto no sonhos como na vigília dois mais três
são cinco e uma esfera é sempre esférica, assim como um quadrado tem sempre
quatro lados, e um triângulo, três. Contudo, o filósofo afirma que essa é a
razão pela qual ciências que tratam de coisas compostas (Física, Medicina,
Astronomia) não oferecem tanta certeza como as ciências que tratam de coisas
simples (Aritmética e Geometria).
Nesse sentido, o conhecimento geométrico e
aritmético encontrados nos sonhos são a prova de que eles não são totalmente
ilusões, pelo menos não tanto quanto a realidade em vigília a ponto de
separar-se completamente dela.
Para Descartes, Deus pode ser
enganador no sentido de permitir o engano no mundo, porém ele enfatiza sua
bondade soberana. Não é porque permite o engano que Deus seja mal, pois ele
pode ser enganador por não querer que nos decepcionemos com as desilusões
causadas pela constatação das verdades que ainda não possuímos. Dessa maneira,
faz parte da sua bondade permitir o engano.
Assim, Descartes converte o termo do
"Deus enganador" em "Gênio maligno". Segundo o filósofo
francês, esse gênio o faz acreditar em seus sentidos, que são ilusórios. Dessa
forma, ele suspenderá seu juízo quanto a crenças relacionadas aos sentidos afim
de cuidar para que nenhuma crença falsa lhe seja imposta pela industria do gênio
maligno.
Descartes encerra o capitulo
descrevendo um tipo de preguiça que o assola e que lhe tira a coragem para
seguir com o laborioso esforço de buscar a luz e o conhecimento da verdade.
Na segunda parte das meditações,
Descartes descreve seu sentimento que o enche de dúvidas. E, embora esteja se
sentindo assim, continuará como antes: se afastará das coisas e opiniões
duvidosas como se fossem falsas e seguirá assim até conseguir alguma certeza.
Não importado se a primeira certeza seja a mais importante ou "mais alta
certeza", mas tão somente que seja a inauguradora das certezas.
Dessa forma, recomeça sua reflexão
supondo que tudo o que vê é falso: pensa não apenas que não possui corpo e
sentidos mas desacredita a realidade aparente de tal forma que supõe que tudo o
mais são ficções do seu espírito (mente), restando unicamente a incerteza do
mundo.
Apesar disso, não vê necessidade em
recorrer à divindade para encontrar as causas da sua dúvida, já que ele próprio
se vê capaz de produzi-las. Isso o leva a questionar se ele não é alguma coisa,
pois era capaz de algo e assim seria algo.
Mais: será que sua existência
dependia dos sentidos e do corpo? Essa possibilidade não contradiria a
afirmação diante da qual não há nada no
mundo de certo, incluindo ele mesmo? certamente não. Segundo o relato do seu
próprio pensamento, sua existência é indubitável.
Levando em consideração a sua
epifania anterior de que existe um gênio maligno que o engana sistematicamente,
Descartes afirma que há algo de que não pode se enganar: de que ele é algo
enquanto pensa ser esse algo. Assim, Descartes afirma que é algo e que existe.
Ele diz que isso é verdadeiro todas vezes que é concebido ou enunciado em seu
espírito, alma, mente.
Essa frase representa, neste momento
de sua obra, um transição que irá analisar a natureza do eu-existente-cartesiano. Assim, ele se volta para sua
auto-suficiência capaz de encontrar verdades. O que, alias, reflete o título dessa parte das meditações
(Meditações Parte II) que é: "Da natureza do espírito e de como ele é mais
fácil de conhecer do que o corpo".
Descartes sabe que é, mas não sabe o
quê é. Qual o conteúdo da existência que afirma ser verdadeira? é partindo
desse ponto que Descartes sugere sua investigação metódica a fim de definir-se
verdadeiramente. Para isso, se despoja, como antes, de todas as suas opiniões e verdades infundadas.
Agora, Descartes busca o que é
indubitável em ser um homem: aquilo que é o homem, o que é o define
verdadeiramente. Será sua racionalidade? O filósofo discorda desse método de
investigação e realinha-se com o método de dúvida, no qual acredita que será
mais bem sucedido.
Dessa forma, primeiramente, ele
considera apenas a si mesmo, a saber: que ele é um corpo. Para ele, isso o leva
as relações entre sua alma e corpo. Mas o que é uma alma ?- Pergunta. Será como
o vento?. O corpo, nos diz ele, não pode ocupar dois lugares ao mesmo tempo e é
identificado como uma figura. Ele pode ser tocado pelo tato, visto pela visão,
cheirado pelo olfato, etc. Além disso, pode ser afetado e movido.
Na procura por sua essência, ou
daquilo que o defina segundo as coisas as quais ele não pode duvidar, quais são
os atributos que lhes pertence? caminha e alimentar-se, mas visto que não
possui corpo algum, não podemos aceitar tal resposta. Outra é sentir, mas
sentir depende do corpo, e, além disso, é possível sentir enquanto dorme. Resta
o pensar, o qual é dito aquilo o qual não pode ser separado de mim, diz ele:
Eu sou, eu existo.
Isso é certo, mas por quanto tempo? a saber por todo o tempo em que penso, pois
poderia ocorrer que se eu deixasse de pensar, deixaria ao mesmo tempo de ser ou
de existir. Nada admito que não seja necessariamente verdadeiro. Nada sou, pois
falando precisamente, senão uma coisa que pensa. (DESCARTES, 1979, p.94)
Assim,
Descartes conquista sua primeira certeza na ordem das razões usando seu método:
uma coisa que pensa é também uma coisa que duvida, pois o ato de pensar é o
mesmo ato de duvidar. Dessa forma, o método excluiu tudo o que era duvidoso,
mas encontrou na dúvida a certeza daquilo que era essencial para Descartes
existir.
Para ele, pensar se dá de diferentes
modalidades que incluem duvidar (não acreditar estar convencido de algo),
conceber (gerar, produzir conceitos), afirmar ou negar (formar juizos acerca de
algo), querer ou não querer (decidir por isto ou aquilo), sentir (ver, ouvir,
cheirar, tocar e "saborear") (o saborear se subdivide em salgado,
doce, amargo, azedo e mais recentemente "umami"), Além do imaginar.
No senso comum, imaginar está
associado a fantasiar, mas para Descartes isso não se segue. O filósofo não vê
a imaginação como uma atividade de criatividade exclusivamente, apesar, da
criação imaginativa existir. Tal forma de percepção está restrita, no texto, às
coisas materiais.
Imaginar, para Descartes, pressupõe a
existência de corpos, sendo sempre a imagem de coisas corporais, pois nossos
sentidos percebem coisas corporais e não fantasias. Assim os sentidos e a
imaginação são entrelaçados a coisas materiais. Além disso, a imaginação pode
também estar associada a memória, pois ao lembrarmo-nos de algo, invocamos na
mente imagens de coisas corporais. Reunimos, assim, os dados dos sentidos ao
imaginar.
Nesse sentido, a imaginação para Descartes
é muito mais simples do que a noção difundida pelo senso comum. Todas essas
modalidades ocorrem internamente e não externamente, sendo os modos de pensar
atos sempre introspectivos.
Dessa forma, apenas o pensar resiste
a exclusão metódica. O que nos leva novamente a proposição quando o filósofo
afirma " Eu sou, eu existo é necessariamente verdadeira sempre que eu a pronuncio
ou a concebo em meu espírito. Assim, é da unidade entre pensar e existir que
concebe-se a natureza daquilo que tenho certeza.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS:
DESCARTES,
René. Meditações Metafísicas, in Os
Pensadores, edição Abril, Rio de Janeiro, 1979.
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