No prefácio da primeira edição da “Critica da Razão Pura”, Kant expõe brevemente os terrenos percorridos pela metafísica dogmática ao longo de sua história, nos quais veio a ser considerada a rainha das ciências e, em paralelo ao nobre título, objeto de desprezo. O chamado "problema crítico", que volta a ser investigado no prefácio da segunda edição, apresenta em seu núcleo conceitual um fato que, para Kant, se mostra consumado: enquanto a lógica, as matemáticas, a física e as demais ciências naturais têm encontrado o caminho seguro da ciência, a metafísica, a mais antiga de todas elas, não pôde elevar-se a tal patamar. Neste cenário, a questão fundamental que orienta as investigações kantianas pode ser resumida nos seguintes termos: é possível uma metafísica como ciência? Trata-se, pois, de estabelecer um diálogo com a tradição que o precedeu a fim de decidir sobre a possibilidade ou impossibilidade de uma metafísica em geral, bem como sobre seus princípios, sobre sua extensão e, consequentemente, seus limites. Para solucionar este problema, coube a Kant, por razões imprescindíveis, pensar criticamente acerca da própria razão - uma vez que trata-se da peça precípua dentro do processo de produção do conhecimento científico -, procurando delimitar as fronteiras que determinam o que compete à razão realizar e o que ela é incapaz de entender.
Sendo a metafísica um sistema dedutivo de verdades racionais que contêm os primeiros princípios do conhecimento humano sem levar em consideração os objetos que se apresentam à experiência, como queria Descartes, a resposta à pergunta por sua possibilidade científica exige responder previamente em que consiste a ciência. Sobre o que se fundam tais verdades? Em que condições são elas racionalmente justificadas? Devemos frisar, de início, que existe uma diferença fundamental entre Kant e seus predecessores ao se colocarem diante do problema do conhecimento: os filósofos anteriores analisavam o problema sem a referência de uma ciência efetivamente madura. Por isso, ao confrontar-se com a pergunta de quando um conhecimento é verdadeiro, Kant o faz a partir de como conhece a ciência newtoniana. É um fato que a ciência físico-matemática de Newton, sendo uma ciência da experiência, está regida por princípios matemáticos que garantem sua necessidade e universalidade. Mas é Hume, contudo, quem o desperta de seu “sono dogmático” provocado pelo estudo e adoção de conceitos defendidos por autores racionalistas como Leibniz e Wolff em sua fase pré-crítica.
A partir de Hume, não há dúvidas de que todo conhecimento começa com a experiência, nos diz Kant no primeiro parágrafo da introdução da “Critica da Razão Pura”; no entanto, como sustenta ele logo no segundo parágrafo, não é por essa razão que todo ele procede da mesma. Diferente do que haviam afirmado os racionalistas e os empiristas, para os quais - dito de maneira perfunctória - havia somente uma fonte do conhecimento (a razão para os primeiros, e a experiencia para os últimos), para Kant o conhecimento pode ser formado a partir de duas fontes básicas: uma, a sensibilidade, que fornece a matéria do conhecimento procedente da intuição dos objetos presentes no tempo e no espaço; e outra, o entendimento, que da a forma aos dados intuídos, conferindo-lhe sentido.
Kant aponta para o fato de que o conhecimento assim colocado compõe-se de juízos, isto é, de afirmações, negações, proposições ou sentenças em que estabelece-se uma relação entre sujeito, predicado e cópula, e, por isso, é certo que todo conhecimento se expressa em juízos. Perguntaremo-nos, pois, pelos distintos tipos de juízos possíveis de formulação. Kant distinguirá, num primeiro momento, dois tipos de juízos: os juízos analíticos e os juízos sintéticos. Nos juízos analíticos o predicado está compreendido no conceito do sujeito; são, portanto, juízos tautológicos, isto é, juízos que não acrescem o conhecimento, uma vez que apenas explicam uma determinada relação entre o sujeito e o predicado. Nesse sentido, os juízos analíticos são sempre verdadeiros, e ao não depender da experiência, são a priori. Como exemplo de juízo analítico propomos o seguinte: "O triângulo possui três lados". Para encontrar o predicado deste juízo, diz Kant, não é necessário decompor o conceito do sujeito e analisá-lo, dado que não tenho que ir além do conceito de triângulo para saber que este tem três lados. Os juízos sintéticos, ao contrário, são aqueles em que o predicado não está compreendido no sujeito, como quando digo "Todos os triângulos são verdes". Como a relação entre o sujeito e o predicado adiciona algo ao sujeito que não está compreendido em seu conceito (o conceito de triângulo não contem a ideia de verde), esse tipo de juízo pode ser tido como extensivo, dado que amplia meu conhecimento do sujeito.
Destarte, a partir de quais destes juízos é possível formular um conhecimento apodítico? Não podem ser os juízos analíticos porque, como vimos, é impossível uma ciência como a física que não parta da experiência. Desse modo, temos que nos voltar aos juízos sintéticos, que nos dizem sobre a realidade mesma. Entretanto, os juízos sintéticos, ao contrário dos analíticos, são contingentes - uma vez que poderiam ocorrer de outra maneira sem entrar em contradição - e particulares - visto que ao serem o resultado de uma generalização indutiva, estão submetidas aos dados da observação, ou seja, as proposições serão válidas enquanto o que temos visto até agora for estável de acordo com esta regra-, e, como vimos, toda ciência deve conter os requisitos de necessidade e universalidade. Portanto, a ciência, em principio, não pode ser construída nem a partir de juízos analíticos, nem a partir de juízos sintéticos. Contudo, estamos seguros de que certos juízos implicam necessidade e universalidade, e se essas condições não podem proceder da experiência, é forçoso que sejam a priori. Para resolver este problema, o filósofo observa a necessidade de um terceiro tipo de juízo, a saber, os juízos sintéticos a priori.
Kant dedica o capítulo quinto da introdução para demonstrar que todas as ciências teóricas da razão contêm juízos sintéticos a priori como princípios, isto é, que não só existem tais juízos sintéticos a priori, como também estes fundamentam a ciência. Enquanto os juízos sintéticos a posteriori seriam contingentes e dependeriam totalmente da experiência, os juízos sintéticos a priori comportam um conhecimento universal e necessário, e, sendo sintéticos, aumentam nosso conhecimento, tal como requer a ciência. Como exemplo de juízos sintéticos a priori propomos o seguinte: “A soma dos ângulos internos de um triângulo equivale a 180°”. Eis um juízo sintético que, ainda assim, é a priori. Na proposição geométrica, o valor da soma dos ângulos internos acresce um novo conhecimento à idéia de triângulo, o que descarta a necessidade de uma averiguação empírica com o uso de um medidor, por exemplo, para conhecer essa propriedade.
Tendo em vista o que o conhecimento nos moldes newtonianos exige para que possa ser tido como tal, cabe aqui retornarmos à questão introdutória: é possível uma metafísica como ciência? Segundo Kant, uma afirmação é metafísica quando afirma algo substancial ou relevante sobre algum assunto que por princípio escapa à possibilidade do testemunho empírico. É certo que todo juízo que tenha a pretensão de ser um conhecimento científico e, ainda assim, almeje compreender um objeto que não está posto no tempo e no espaço - como Deus, imortalidade da alma eou liberdade, por exemplo -, é necessariamente inválido e leva a razão ao que Kant chama de dialética. A “Crítica da Razão Pura” nos conduz, portanto, à conclusão de que à metafísica, dentro dos parâmetros estabelecidos, não cabe o estatuto de ciência. No entanto, não haverá outra via, outro caminho que não o da ciência teórica, que nos conduza às verdades da metafísica? Nesse sentido, Kant trata de inaugurar as bases de uma “nova metafísica”, uma espécie de reformulação técnico-metodológica que a resgatará para o seu lugar de origem, em que não há a preocupação de conhecer um objeto, mas de pensá-lo afastado do campo propriamente empírico.
Paralelo à rejeição da metafísica dogmática como ciência, Kant elimina os ataques que o conhecimento teórico científico possa fazer a uma outra metafísica que não se fundamenta na atividade cognitiva da razão pura, mas em outras atitudes. Por trás do exame crítico da razão pura, diz Kant, existem caminhos condutores aos objetos da metafísica. Nesse sentido, quais são esses caminhos? Dentre tantos outros campos da atividade humana, há uma forma de atividade mental a qual Kant denomina Razão Prática. A Razão Prática contem dentro de si um certo número de princípios em virtude dos quais regemos nossa conduta e a partir dos quais formulamos juízos de caráter moral acerca de nos mesmos e dos que nos rodeiam. Neste conjunto de princípios, encontra Kant a base que pode conduzir o homem à apreensão dos objetos metafísicos. Diferente da razão pura, a razão prática é o campo do absolutamente incondicionado, do heurístico, do regulativo, da ação livre da razão que se inclina naturalmente para pensar e formular ideias acerca de objetos não só da metafísica, como também da história, da educação, da moral, etc. Dessa forma, Kant elimina todo o idealismo iniciado por Descartes e, do mesmo modo, a propensão de Hume em negar radicalmente todo e qualquer procedimento metafísico. É forçoso que o reposicionamento da metafísica a sentencie, deste modo, a pavimentar os terrenos percorridos pela epistemologia, assim como as demais disciplinas filosóficas. Nesse sentido, é igualmente forçoso que para determinar os limites da metafísica, Kant se valeu da mesma e que, por isso, "A Crítica da Razão Pura" é um procedimento metafísico.
Autor: Ailton Filho.
Autor: Ailton Filho.
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