quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Resenha: as epístolas (cartas) de Sêneca

No decorrer da história da filosófia a escrita de Cartas foi um estilo que, apesar de não apresentar o rigor dos tratados filosóficos, têm grande relevância no âmbito da escrita filosófica. Platão, René Descartes, Emanuel Kant, David Hume e Voltaire são alguns dos filósofos cujas cartas foram publicadas postumamente. O presente texto, no entanto, tem por objetivo analisar as Cartas de Lucio Anneo Sêneca (4 a.C – 65 d.C), que compreendem 124 textos.
Com a proposta de mostrar o caminho à sabedoria, as epistolas (do grego ordem ou mensagem) são textos no formato de cartas que emitem a intenção de defender e manifestar uma ideia. Obrigatoriamente têm um emissor e um destinatário, anônimos ou não. Segundo Ingeborb Braren a epístola pode ser destinada ao público em geral ou a um determinado grupo:

Do ponto de vista do conceito de Epistolografia na Antigüidade Clássica, não nos restou, infelizmente, uma teoria antiga específica e sistematizada sobre a epistolografia. Se considerarmos a antiga definição de Artêmio, o editor das cartas de Aristóteles, de que carta é parte de um diálogo juntamente com referências de Cícero de que nelas o autor parece estar conversando com o amigo ausente, conloquia absentium (Cic. Fil. 2, 7, 4), teremos um bom ponto de partida, pois verifica-se que é muito comum o eu dirigir-se a um tu, como, na conversa, o locutor ao alocutado.

Sêneca utilizou a epistolografia para defender os ideais do estoicismo, tais como a busca pela tranquilidade da alma e a renúncia dos bens materiais. A obra Epistolae Morales ad Lucilium (Aprendendo a viver), que é uma coletânea de 29 cartas endereçadas a seu amigo Lucílio, representa o ponto mais alto da filosofia moral do pensador estóico.
Na Carta I Da economia do tempo, na qual Sêneca escreve conselhos ao seu amigo e é introduzida com a frase “Comporta-te assim, meu Lucílio”, é notável a despreocupação do filósofo com as formalidades. A frase carinhosa denuncia o tom de intimidade que perdurará durante toda a carta.
Nessa introdução, o filósofo expõe suas ideias sobre tempo perdido, desperdiçado e “lamentavelmente” negligenciado; além de, em tom de conselho, dizer a Lucílio que recolha seu próprio tempo e que o aproveite melhor:

Então, caro Lucílio, procura fazer aquilo que me escreves: aproveita todas as horas; serás menos dependente do amanhã, se te lançares ao presente. Enquanto adiamos, a vida se vai. Todas as coisas, Lucílio, nos são alheias, só o tempo é nosso.

E, ainda:

Convence-te de que é assim como te escrevo: certos momentos nos são tomados e outros nos são furtados e outros ainda se perdem no vento. Mas a coisa lamentável é perder tempo por negligência.

Sêneca nos faz refletir sobre a efemeridade do tempo, sua importância e singularidade. Evidência, inclusive, a morte como consequência dessa efemeridade. A ideia da carta centra-se, basicamente, sobre esses pilares e na intenção do autor em evidenciá-los, para orientar as escolhas do seu interlocutor.
O autor questiona a possibilidade de encontrar alguém que saiba o valor do próprio tempo e defende que falhamos por achar que “a morte é coisa do futuro”, pois qualquer tempo que passou pertence à morte. Compartilhando, dessa maneira, sua visão da morte frente ao tempo que não para. E, mostrando, assim, uma crítica à sociedade na qual viveu:


Podes me indicar alguém que dê valor ao seu tempo, valorize o seu dia, entenda que se morre diariamente? Nisso, pois, falhamos: pensamos que a morte é coisa do futuro, mas parte dela já é coisa do passado. Qualquer tempo que já passou pertence à morte.

Apenas o tempo nos pertence. O pensador compartilha com Lucílio que aproveitar o presente é ser menos dependente do amanhã, pois a vida se esvai quando procrastinamos. Sêneca refere-se ao tempo, que possuímos através da natureza, como “escorregadio”, facilmente privado de nós sem nos darmos conta disso. Sêneca, dessa forma, fala do tempo perdido e dos dias em que deixou escapar o hoje em detrimento do amanhã. Aborda, inclusive, da sua descoberta: o tempo é seu único bem que não pode ser devolvido a ninguém.
É possível notar, além da informalidade demonstrada pela forma íntima que Sêneca se expressa, características de uma autobiografia, tendo em vista que nela se encontram experiências do autor, como ensinamentos que ele quer passar adiante. Por isso, temos uma pequena demonstração de como o filósofo levava adiante suas relações. Sêneca dá dicas do seu próprio estilo de vida. Vive de modo requintado, porém cuidadoso. Diz, ainda, que tem consciência daquilo que perde, mas que sabe dizer o porquê e como perde:

Talvez me perguntes o que faço para te dar esses conselhos. Eu te direi francamente: tenho consciência de que vivo de modo requintado, porém cuidadoso. Não posso dizer que não perco nada, mas posso dizer o que perco, o porquê e como; e te darei as razões pelas quais me considero miserável. No entanto, a mim acontece o que ocorre com a maioria que está na miséria não por culpa própria: todos estão prontos a desculpar, ninguém a dar a mão.

A intenção do autor de descomplicar suas ideias para o entendimento do seu interlocutor é evidente. Por isso, a carta, como uma fonte informal de acesso às ideias do autor, transmite-nos clareza na forma como é lida, o que facilita a compreensão das ideias nela presentes. É através delas que Sêneca demonstra uma doutrina filosófica sem o rigor de um tratado.
A questão da efemeridade da vida remete a filosofia romana do Carpe Diem. O poeta romano Horácio (65-8 a.C) referiu-se a essa filosofia da seguinte maneira: Carpe diem quam minimum crédula póstero ( Colha o dia, confie o mínimo possível no amanhã). O que, comparando com a seguinte frase de Sêneca, soa com significado semelhante: serás menos dependente do amanhã se te lançares ao presente.
O pensamento de Sêneca influenciou teorias sobre a liberdade. Segundo o pensador estoico, o homem deve pensar a sua própria vida. Para Jean Paul Sartre (1905-1980) a existência precede à essência e, portanto, o homem não possui algo que o determine senão as circunstâncias derivadas de sua escolha. Nesse sentido, o homem nasce livre, ou, segundo o próprio Sartre: nasce condenado à liberdade. Ser livre demanda responsabilidade diante das próprias escolhas, o que normalmente causa angústia entre os homens. a escolha é tão essencial ao homem pois não escolher é impossível: Se não optarmos, ainda assim optamos por algo.
É possível encontrar relações entre a filosofia de Sêneca e a de Epicuro: Ambos buscavam uma sabedoria que os libertasse do sofrimento, atingindo a felicidade. A melhor forma de viver racionalmente foi tema da filosofia deles. Enquanto Sêneca foi influenciado e influenciador dos valores estoicos, Epicuro, que também é autor de Cartas, foi fortemente influenciado pelo pensamento de Pirro.
Epicuro, em sua Carta a Meneceu, defende que não é possível ser feliz com medo e, por isso, para ser alcançar a felicidade o homem não deve temer os Deuses ou a morte. Para tal, ele precisa entender como funciona a natureza e controle suas crenças: os deuses, divinos e perfeitos, não irão nos castigar, pois não se misturam com a vida humana. Por outro lado, a morte nada é para nós, uma vez que quando ela é, nós não somos mais. Segundo Epicuro, a morte é a privação das sensações, e, uma vez que todo bem e todo mal advém das sensações, a morte nem bem e nem mal consegue ser, Nesse sentido, não nada de terrível em deixar de viver. Ainda de acordo com os epicuristas, temer a morte é fruto de ignorância.

Portanto, é possível concluir que a Carta como estilo filosófico é uma fonte de acesso menos denso –mas não de menor importância- às ideias de um autor. No caso das cartas de Sêneca, por exemplo, foi notável como o pensador trouxe a filosofia para sua forma de vida. De forma breve e direta, Sêneca oferece, em suas cartas, um pensamento elevado que influenciou a filosofia, da antiguidade à contemporaneidade.

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