quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Erotismo e teologia em “Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres”, de Clarice Lispector: um paralelo com São João da Cruz.

  1. Considerações iniciais.
Apesar de ser escrito predominantemente em terceira pessoa, “Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres”, publicado inicialmente em 1969, dá continuidade à extrema reflexão sobre a subjetividade que caracteriza toda a obra da escritora ucraniana naturalizada brasileira Clarice Lispector (1925-1977).
De acordo com os exegetas da autora, seu corpus literário debruça-se sobremaneira sobre quatro eixos temáticos: a crítica social a partir da representação de protagonistas majoritariamente femininas, “mulheres comuns circunscritas por estruturas patriarcais tradicionais que esvaziam a possibilidade de viver em plenitude” (SCHMIDT, 2010, p. 52); a metaficcionalidade, detectada em narrativas que expõem os limites da ficção e o próprio sentido da literatura; a perspectiva filosófica, através da qual são “adensadas e exploradas as relações sujeito/objeto, razão/emoção, existência/aparência, imanência/transcendência, natureza/cultura, bem como questões candentes, do ponto de vista teórico-crítico contemporâneo, relativas à identidade, enquanto diferença, e à alteridade” (SCHMIDT, 2010, p.53); e “a rede intertextual que sustenta e orquestra a pluralidade de fragmentos, muitas vezes oriundos de outros sistemas de signos, que não  literário” (SCHMIDT, 2010, p.53).
Mesmo quando não estrutura seus romances em primeira pessoa – o que acontece ostensivamente em “A Paixão Segundo GH”, publicado em 1964 – Clarice Lispector utiliza-se abundante de um recurso literário conhecido como “subjetiva indireta livre”, que consiste numa espécie de penetração intensificada da subjetividade num discurso que se propõe como objetivo. Esta forma, o ‘discurso indireto livre’, “coloca muitos problemas aos gramáticos e lingüistas: ela consiste numa enunciação tomada em um enunciado que, por sua vez, depende de uma outra enunciação. Por exemplo, no francês: ‘Ela reúne a sua energia: antes ser torturada do que perder a sua virgindade’” (DELEUZE, 1983, p. 97 – grifado no original).
O exemplo destacado acima, constante de uma análise do lingüista Mikhail Bakhtin, expõe bem a particularidade deste tipo de discurso: “não há mera mistura entre dois sujeitos da enunciação inteiramente constituídos, dos quais um seria o relator e o outro o relatado. Trata-se antes de um agenciamento de enunciação operando ao mesmo tempo dois atos de subjetivação inseparáveis, um que constitui o personagem na primeira pessoa, enquanto o outro assiste ao seu nascimento e o encena” (DELEUZE, 1983, p. 97).
Num cotejo com as obras anteriores da autora, pode-se verificar até que ponto, em praticamente todos os seus romances, “o discurso direto alterna com o indireto, até assumir, em diversos trechos, sobretudo na parte final, a forma de um monólogo interior” (NUNES, 1995, p. 77). Isso não é diferente em “Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres”, em que, não obstante haver uma instância narrativa em terceira pessoa, a primeira pessoa invade as páginas em inúmeras oportunidades. Se, a esta instância narrativa não nomeada é permitido relatar de maneira extremamente onisciente (em perspectivas espacial, temporal e espiritual) os dramas e dilemas cotidianos da protagonista Lóri, é amplamente reconhecível um estilo de escrita condizente com o atormentado (e/ou extasiado) estado de espírito da personagem, que, não por acaso, é o da própria escritora, conforme é antevisto na epígrafe do livro: “este livro se pediu uma liberdade maior que tive medo de dar. Ele está muito acima de mim. Humildemente tentei escrevê-lo. Eu sou mais forte do que eu” (LISPECTOR, 1969, p. 09 – grifado no original).
Esta distinção – que se transforma em proposital indistinção ou embate – entre instância narrativa, quiçá masculina, e protagonista feminina ficará ainda mais evidente no díptico “A Hora da Estrela” e “Um Sopro de Vida”, publicados em 1977 e 1978, respectivamente. Em todos os livros citados, a questão do instante em que se começa a existir torna-se obsedante, seja na quase recusa de Ângela a ser criada em “Um Sopro de Vida”, seja tensão criativa antecedente ao surgimento de Macabéa que caracteriza “A Hora da Estrela”:
“Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo começou. Que ninguém se engane, só consigo a simplicidade através de muito trabalho. Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever. Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer?” (LISPECTOR, 1977, p. 11).

É justamente este tipo de questionamento que “o autor” do livro publicado em 1969 se debruça sobre a aventura de existir de Loreley, em constante diálogo com seu namorado Ulisses, não por acaso título de célebre obra literária do irlandês James Joyce (1882-1941), do qual Clarice Lispector se aproxima em sua linguagem modernista absolutamente inovadora. Em “Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres”, inclusive, a autora atreve-se radicalmente a iniciar o livro com uma vírgula e encerrá-lo com dois pontos, numa redefinição deveras singular de ambos os sinais de pontuação.
No primeiro caso, um imenso parágrafo, quase de página inteira, no qual a instância narrativa lança o cotidiano sequioso de Lóri:
“,estando tão ocupada, viera das compras de casa que a empregada fizera às pressas porque cada vez mais matava serviço, embora só viesse para deixar almoço e jantar prontos, dera vários telefonemas tomando providências, inclusive um dificílimo para chamar o bombeiro de encanamentos de água, fora à cozinha para arrumar as compras e dispor na fruteira as maçãs que eram a sua melhor comida, embora não soubesse enfeitar uma fruteira, mas Ulisses acenara-lhe com a possibilidade futura de por exemplo embelezar uma fruteira, viu  o que a empregada deixara para jantar antes de ir embora, pois o almoço estivera péssimo, enquanto notara que o terraço pequeno que era privilégio de seu apartamento por ser térreo precisava ser lavado, recebera um telefonema convidando-a para um coquetel de caridade em benefício de alguma coisa que ela não entendeu totalmente mas que se referia ao seu curso primário, graças a Deus que estava em férias, fora ao guarda-roupa escolher que vestido usaria para se tornar extremamente atraente para o encontro com Ulisses que já lhe dissera que ela não tinha bom gosto para se vestir, lembrou-se de que sendo sábado ele teria mais tempo porque não dava aula nesse dia as aulas de férias na Universidade, pensou no que ele estava se transformando para ela, no que ele parecia querer que ela soubesse, supôs que ele queria ensinar-lhe a viver sem dor apenas, ele dissera uma vez que ela, ao lhe perguntarem seu nome, não respondesse ‘Lóri’ mas que pudesse responder ‘meu nome é eu’, pois teu nome, dissera ele, é um eu, perguntou-se se o vestido branco e preto serviria,” (LISPECTOR, 1969, p.13).

A citação é longa, mas necessária para se demonstrar não apenas como a personagem encarava o seu “vida a vida” – já que é assim que descreve o seu dia a dia: “chegara à conclusão de que ela não tinha um dia a dia mas sim uma vida a vida” (LISPECTOR, 1969, p. 35) – mas também para expor a pletora de transgressões lingüísticas associadas ao fluxo de pensamento característico do estilo do autor. Na obra de Clarice Lispector, por sua vez, a linguagem age numa “relação peculiar com o saber (epistemologia) e o ser (ontologia), linguagem esta trabalhada em uma escritura de ilusória facilidade, que desloca a sintaxe e a semântica de seus usos convencionais para gerar um discurso narrativo prenhe de alusões e ambigüidades, tensões e distensões” (SCHMIDT, 2010, p. 52).
Analisando estas transgressões lingüísticas a partir de seu sentido, verifica-se que a autora tenta abordar, a partir delas, a identidade do ser, que se procura exprimir e, ao mesmo tempo, assinala “o extremo limite da introspecção e da linguagem, já confinando com o inexpressivo que se busca, e além do qual nada mais pode ser dito. A identidade pura, a plenitude do ser, seria o silêncio inenarrável” (NUNES, 1995, p. 74). Ou seja, o tipo de linguagem adotado é justamente aquele que mais se equipara ou corresponde à jornada de autodescoberta vivenciada pela protagonista.
II. O prazer.
Antes de prosseguir nas bifurcações da análise conteudística do livro, onde se encontram diversas reminiscências autobiográficas da autora, convém tentar organizar sinopticamente a trama: Loreley, apelidada Lóri, é uma filha de pais ricos, nascida na cidade do interior fluminense Campos do Goytacazes, que, após ter vivido alguns anos na Europa (Suíça e França, especificamente), vai morar no Rio de Janeiro, onde trabalha como professora de colégio primário. Apaixona-se por um professor universitário de Filosofia, chamado Ulisses, mas reluta em entregar-se sexualmente a ele, não apenas por conta da insegurança dele em relação aos amantes prévios dele, mas sobretudo pela própria indefinição do amor que ela sente e que ainda não entende.  Tal amor é entrecortado por elucubrações acerca da própria existência de Deus, em que Loreley acredita intensamente e em relação ao qual Ulisses contrapõe à ciência, o que torna a jornada de autodescoberta de Lóri um (re)encontro com o próprio Deus, ao qual Lóri sempre se refere com a adição do artigo definido singular masculino (“o”), o que engendra o seguinte diálogo elucidativo:

“ – Deus não é inteligente, compreende, porque Ele é a Inteligência, Ele é o esperma e óvulo do cosmos que nos inclui. Mas eu queria saber por que você, em vez de chamar Deus, como todo o mundo, chama o Deus?
- Porque Deus é um substantivo.
- É a professora primária que está falando.
- Não, Ele é substantivo como substância. Não existe um único adjetivo para o Deus.
‘Vós sois deuses’. Mas éramos deuses com adjetivos” (LISPECTOR, 1969, p.133).

Para além das firulas justificativas de Loreley em relação à palavra Deus enquanto substantivo, o modo como ela perquire a transcendência teológica encontra ressonância na obra religiosa do monge espanhol João da Cruz (1542-1591), cujo tema recorrente era a descrição possível da união da alma com a Trindade, dado que “não é, pois, coisa impossível chegar a alma a atingir tão grande, pensando em Deus, por participação, como ele mesmo nela aspira” (‘apud’ LELOUP, 2008, p. 27).
Em razão de o título do artigo abordar a relação entre a liberdade, morte e prazer na obra lispectoriana destacada, estes aspectos serão destacados em detrimentos de outros, não esquecendo que “uma crítica que se queira integral deixará de ser unilateralmente sociológica, psicológica ou lingüística, para utilizar livremente os elementos capazes de conduzirem a uma interpretação coerente. Mas nada impede que cada crítico ressalte o elemento de sua preferência, desde que o utilize como componente da estruturação da obra” (CÂNDIDO, 1965, p.09). É o que se tentará fazer a partir da perspectiva erótico-teológica daqui por diante.
A partir de um comentador da obra de João da Cruz, pode-se encontrar um julgamento que combina perfeitamente com o tipo de embate entre amantes que, na obra de Clarice Lispector, conduz ao sentimento pleno de Deus. Ou seja, se o processo de união entre os enamorados pressupõe uma semelhança inicial entre seres tangencialmente discordantes que se fundem um no outro, “Deus é quem põe o primeiro impulso, a centelha inicial. Uma vez que foi provocado o desejo, foge e se esconde porque quer ser buscado, encontrado e conquistado. E posto que isso é o que se quer, ajuda a quem o busca” (YNDURÁIN, 1990, p.85).
Em “Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres”, esta comunhão entre o desejo dos amantes e a manifestação do próprio Deus fica tão mais intensa quanto mais entregues ao prazer sexual permitem-se o casal central, Loreley e Ulisses. Se, após o terceiro conluio erótico consecutivo, Ulisses tacha o valor social de Lóri como sendo “o de uma mulher desintegrada na sociedade brasileira de hoje, na burguesia da classe média” (LISPECTOR, 1969, p. 156), em resposta a uma pergunta súbita que ela própria faz, daquele momento em diante, Lóri pode sentir-se segura o suficiente para explicar o porquê da diferenciação de crenças em Deus entre ela própria e seu amante:
“Meu amor, você não acredita no Deus porque nós erramos ao humanizá-lo. Nós O humanizamos porque não O entendemos, então não deu certo. Tenho certeza de que Ele não é humano. Mas embora não sendo humano, no entanto, Ele às vezes nos diviniza. Você pensa que –“ (LISPECTOR, 1969, p. 159).
Neste ponto, acontece a derradeira interrupção, que desemboca em mais uma ruptura marcante das normas de pontuação da língua portuguesa, visto que o livro encerra com dois pontos [:], quando Ulisses expunha o que pensava em contraposição ao que Lóri declarara. Mais uma vez, uma comparação com o que é exposto pelo comentador de João da Cruz faz sentido: “o amor é um rapto, uma violência que se exerce desde fora sobre o objeto amado; mas também é o ato mesmo do amor e sua origem, pois um e outro vêm acompanhados de violência e dor, de uma ferida e um sofrimento semelhante ao que o predador inflige à caça” (YNDURÁIN, 1990, p.89). É exatamente desta forma que se desenvolve a relação entre Loreley e Ulisses ao longo de todo o livro: “Ele, o homem, se ocupava atiçando o fogo. Ela nem se lembrava de fazer o mesmo: não era o seu papel, pois tinha o seu homem para isso. Não sendo donzela, que o homem então cumprisse a sua missão” (LISPECTOR, 1969, p. 106).
III. A morte.
O clímax consciencioso do percurso de Lóri em direção ao Deus, metonimizado no contato sexual com o seu amado, talvez esteja no capítulo em que ela banha-se na praia de Ipanema em plena madrugada, e conclui que “era isso o que estava lhe faltando: o mar por dentro como o líquido espesso de um homem” (LISPECTOR, 1969, p. 80). Esta metáfora espermática, inclusive, é deveras proficiente na constatação de que, ao ingerir a água do mar como se fosse sêmen, “Lóri passara da religião de sua infância para uma não religião e agora passara para algo mais amplo: chegara ao ponto de acreditar num Deus tão vasto que ele era o mundo com suas galáxias: isso ela vira no dia anterior ao entrar no mar deserto sozinha” (LISPECTOR, 1969, p. 82).
Voltando ao cotejo com as obras de João da Cruz, pode-se equiparar este banho madrugal de Lóri no mar deserto ao paroxismo da contemplação pura, quer consiste justamente em receber, em manter coração e espírito desapegados de tudo, para preencher-se com a bênção, num estado que o monge compara à própria pureza do ar.
“Daí, a necessidade para a alma de não estar apegada a coisa alguma, seja o exercício de meditação ou raciocínio, seja a qualquer sabor, sensitivo ou espiritual; nem a outros quaisquer conhecimentos; porque se quer o espírito tão livre e aniquilado acerca de tudo, que o mínimo vestígio de pensamento ou discurso, ou gosto, a que então a alma quiser apoiar-se, servirá de impedimento; e trará inquietação e ruído ao profundo silêncio que deve haver tanto na parte sensitiva como na parte espiritual para tão profunda e delicada audição, qual seja a da voz de Deus ao coração, na soledade” (‘apud’ LELOUP, 2008, p. 53).

Designado analiticamente como “o extremo limite da introspecção e da linguagem, já confinando com o inexpressivo que se busca e além do qual nada mais pode ser dito” (NUNES, 1973, p. 64), este momento do percurso existencial de Loreley corresponde à mortificação de si em resgate à identidade pura, à plenitude do ser que encontra o silêncio inenarrável como recurso de linguagem a ser desafiado expressivamente pela instância narrativa onisciente do romance. Por este motivo, vírgulas, travessões, dois pontos e demais sinais de pontuação precisam ser refuncionalizados, num discurso que não raro se presta a neologismos emergenciais.
Por ser uma obra que, desde o romance inicial [“Perto do Coração Selvagem”, publicado em 1944], está inscrita sob o signo da autodescoberta, a linguagem lispectoriana é “complexa, multiforme e desconcertante e que, por isso mesmo, está sempre a provocar novas leituras e a desafiar tentativas de classificá-la ou enquadrá-la nesse ou naquele paradigma interpretativo” (SCHMIDT, 2010, p. 52).
Neste sentido, a linguagem que Clarice Lispector empresta às suas narradoras e protagonistas femininas, em seu desafio por assemelhar-se ao esplendor extático vivenciado pelas personagens, é sempre marcada pela sensação de morte, de ruptura com os sistemas circundantes, numa “espécie de factum que a obriga a descer no seu interior tumultuado, para encontrar, no mergulho introspectivo do êxtase, uma realidade abismal e incontrolável, sem beleza ou consolo, ao mesmo tempo repulsiva e fascinante, inseparável do grotesco” (NUNES, 1995, p. 62).
Em termos religiosos, o método utilizado por Clarice Lispector, através de sua linguagem, é justamente o do ascetismo, em seu anseio por libertar a alma das limitações advindas do conhecimento e no afã por ser unida à divindade. Tal qual acontece nos cânticos de São João da Cruz, a linguagem do asceta precisa amalgamar texto poético e declaração, visto que, tanto num caso como no outro, “se produz, em definitivo, o mesmo fenômeno: o sujeito se alimenta e se deleita com o objeto; ora porque o come, ora porque o contempla e, em certo modo, o absorve e o recebe” (YNDURÁIN, 1990, p. 32).
De acordo com os escritos de São João da Cruz, o conhecimento amoroso – na dupla sanção concedida à expressão no romance de Clarice Lispector – é recebido passivamente na alma a partir do modo sobrenatural de Deus, que não precisa ser o modo natural da alma. “Considere, pois, a alma como nesta obra é primeira Deus quem age; é ele aqui como o guia de cego que há de levá-la pela mão aonde ela jamais saberia ir, isto é, às coisas sobrenaturais, incompreensíveis ao seu entendimento, vontade e memória” (‘apud’ LELOUP, 2008, p. 49). Eis o que acontece com Lóri e, antes e depois dela, com praticamente todas as personagens femininas de Clarice Lispector!
Evidentemente, uma suma intensidade do próprio ato de existir traz à tona uma relação pressentida com a morte, em sua constituição derivada da nudez e do esvaziamento ascéticos, conforme exclama o próprio São João da Cruz em “Subida del Monte Carmelo”: “este cálice é morrer à sua natureza, desnudando-a e aniquilando-a” (NUNES, 1995, p. 64). Tal cálice fora bebido pela protagonista de “A Paixão Segundo G. H.” e é novamente ingerido pela protagonista de “Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres”, visto que tanto uma quanto outra conseguem superar as limitações egoísticas que separam o indivíduo da própria totalidade do real.
IV. A liberdade.
Quando finalmente permite-se dormir ao lado de Ulisses, Loreley “pensou por um instante se a morte interferiria no pesado prazer de estar viva. E a resposta foi que nem a idéia de morte conseguia perturbar o indelimitado campo escuro onde tudo palpitava grosso, pesado e feliz. A morte perdera a glória” (LISPECTOR, 1969, p. 152). Nesta situação, segundo se depreende a partir da exegese de um comentador, “o amor deixa de ser um sentimento limitado, de pessoa a pessoa; a sensibilidade se concentra toda na visão receptiva: o querer, não mais movido pela esperança, aquieta-se e nada anseia” (NUNES, 1995, p. 64). Ou seja, tal qual fora dito antes, este é o momento em que se constata, afinal, que a alma fora esvaziada por completo de tudo aquilo que poderia separar-lhe do ser indiviso, da verdadeira identidade à qual a personagem, que existe, permite-se senti completamente integrada e, portanto, live.
Não obstante a inequívoca carnalidade das situações reais que permitem a Loreley os seus rompantes de transcendentalidade (um mergulho no mar, uma longa noite de sexo, etc.), o tipo de êxtase que a personagem experimenta nestas situações não difere daquele estado que o místico São João da Cruz confere justamente aos santos, que não possuem qualquer receio de sofrer ou de parecerem estúpidos aos olhos dos demais. “Nem a tribulação, nem a angústia, nem a morte, nem nenhuma criatura pode separá-lo d’Aquele que é, d’Aquele que ama e o amou primeiro” (LELOUP, 2008, p. 61).
O modo como o autor-narrador de “A Hora da Estrela” reflete sobre a designação de melodrama ao tentar evitar a morte inevitável de sua personagem Macabéa, que passa a existir com maior intensidade justamente quando morre, coaduna-se com o tipo de sensação extática descrita até então: “Este é um melodrama? O que eu sei é que melodrama era o ápice de sua vida, todas as vidas são uma arte e a dela tendia para o grande choro insopitável como chuva e raios” (LISPECTOR, 1977, p. 82). Mais uma vez, a morte – neste caso concretizada, e não apenas antecipada – surge enquanto “experiência de desapossamento do núcleo da individualidade” (NUNES, 1995, p. 65), tal qual ocorre com Loreley após o seu tríplice orgasmo
V. Clarice em sua obra.
É importante que se abra aqui um parênteses para que a especulação acerca da sublimidade do corpus lispectoriano possa ser vista no que diz respeito às imbricações detectáveis entre as experiências das suas protagonistas e a sua própria vida pessoal. No caso de “Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres”, por exemplo, inúmeras são as situações que refletem dados biográficos da autora, sobretudo quando a personagem relembra eventos vivenciados em Berna ou Paris: “só o silêncio da montanha lhe era equivalente. O silêncio da Suíça, por exemplo. Lembrou-se com saudade do tempo em que o pai era rico e viajavam vários meses por ano” (LISPECTOR, 1969, p. 35).
Dentre os países em que Clarice Lispector morou, após o casamento com um diplomata, nas décadas de 1940 e 1950, estão a Argélia, a Itália, a Suíça, a França e os Estados Unidos, sendo que estas experiências estrangeiras – sendo a própria escritora uma estrangeira radicada no Brasil – repercutirão no itinerário pessoal de suas personagens. “Se os personagens clariceanos são marcados por uma constante mudança, nos diversos planos da existência, com sua autora, o fato se repete. Há uma pergunta básica nessa trajetória comum, em que todos buscam um sentido para a existência, para sua existência particular e para sua inserção no mundo” (KANAAN, 2003, p. 36). Num sentido bastante telúrico, este percurso contínuo redunda na morte enquanto possível retorno a uma origem buscada e impossível de ser reencontrada, salvo em sua transmutação transcendental.
Transferindo as questões de similaridade biográfica para a linguagem confessional das instâncias narrativas e personagens, encontra-se uma justificativa a partir da seguinte constatação que a sua “forma de escrita ‘espontânea’ dá bem a dimensão e a ambição do projeto ficcional e biográfico da escritora. (...) Reivindica, também, uma escrita mais ‘afetiva’, que pusesse em contato direto, físico, ambos os participantes dessa construção e totalmente desprovido de um trabalho racional, como passear no campo” (KANAAN, 2003, p. 45).  Por isso, são tão relevantes as rememorações geográficas de Lóri bem como a nomeação pormenorizada das regiões fluminenses que ela visita ao longo da narrativa.  
Esta similaridade biográfica também requisita uma investigação acerca da expressão de aspectos da realidade que circundam o cotidiano da autora, numa perspectiva social, análise esta que poderia ser discordante daquela cujo tipo seria focada exclusivamente nas operações formais postas em jogo durante a escritura. Atualmente, privilegia-se um tipo de análise em que a integralidade da obra da autora não deve ser realizada a partir da dissociação de ambas as visões descritas, sendo a mesma entendida a partir da fusão de texto e contexto “numa interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o velho ponto de vista que explica pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos necessários do processo interpretativo” (CANDIDO, 1965, p. 06).
VI. Considerações finais.
Diante do que foi aventado até então, a obra de Clarice Lispector – em particular, o romance “Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres” – é venturosa sob todos os prismas analisados, contendo os quatro eixos temáticos que caracterizam o corpus literário da escritora. No intuito de demonstrar que “O Deus sabia o que fazia: Lóri achava que estava certo o estado de graça não nos ser dado freqüentemente. Se fosse, talvez passássemos definitivamente para o ‘outro lado’ da vida, que esse outro lado também era real mas ninguém nos entenderia jamais: perderíamos a linguagem em comum” (LISPECTOR, 1969, p. 136), sua autora subverte regras gramaticais e de concatenação narrativa, atingindo um grau de espiritualidade similar àquela encontrada nos cantos do monge São João da Cruz.
Diz o místico espanhol, em um dos seus cânticos: quando há união de amor, “verdadeiramente é possível afirmar que o Amado vive no amante, e o amante no Amado; é tão perfeita a semelhança realizada pelo amor na transformação dos amados, que podemos dizer: cada um é outro, e ambos são um só” (‘apud’ LELOUP, 2008, p.48). É precisamente o tipo de constatação atingida por Clarice Lispector, através de sua personagem Loreley, quando esta atesta que “era a única em que um ser humano podia ao amar dizer: eu sou tua e tu és meu, e nós é um” (LISPECTOR, 1969, p. 153).  
Ao conjugar seus temas recorrentes com um tipo de escrita inovadora lingüisticamente que, ao mesmo tempo, não se furta a analisar criticamente os comportamentos e condicionamentos sociais atreladas a personagens tipicamente femininas, a autora autoriza um tipo de análise em que a concepção da obra enquanto organismo é que permite, no seu estudo, “levar em conta e variar o jogo de fatores que a condicionam e motivam; pois, quando é interpretado como elemento de estrutura, cada fator se torna componente essencial do caso em foco, não podendo a sua legitimidade ser contestada nem glorificada a priori” (CANDIDO, 1965, p. 16). Foi justamente o que tentou-se fazer a partir deste artigo.   
BIBLIOGRAFIA

CANDIDO, Antonio (1965). “Crítica e Sociologia (Tentativa de esclarecimento)” IN: Literatura e Sociedade. São Paulo: Publifolha, 2000.

DELEUZE, Gilles. “A Imagem-Percepção” IN: Cinema 1: A Imagem-Movimento. São Paulo: Brasiliense, 1983 (pp: 95-113).

KANAAN, Dany Al-Behy. À Escuta de Clarice Lispector – Entre o biográfico e o literário: uma ficção possível. São Paulo: EDUC, 2003.

LELOUP, Jean-Yves. João da Cruz ou À Noite Habitada. São Paulo: Editora Unesp, 2008.

LISPECTOR, Clarice (1969). Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

________________ (1977). A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

NUNES, Benedito. Leitura de Clarice Lispector.  São Paulo: Quíron, 1973.

________________. O Drama da Linguagem: Uma Leitura de Clarice Lispector. São Paulo: Ática, 1995.

SCHMIDT, Rita Terezinha. “Clarice Lispector” IN: MASINA, Léa (org.) Guia de Leitura: 100 Autores que Você Precisa Ler. Porto Alegre: L & PM, 2010 (pp: 51-53).

YNDURÁIN, Domingo. Aproximación a San Juan de la Cruz: Las Letras del Verso. Madri: Cátedra, 1990.

Autor(s): Ailton Filho e WPC.

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